Depois de tanto conversar com Rafael de Oliveira enquanto dividíamos mate no parque da Redenção, finalmente resolvi fazer uma entrevista para compartilhar com os leitores do blog algumas das coisas que venho aprendendo já há alguns anos com este compositor. Formado pela UFRGS e doutorando em Composição no CIME – Centro de Investigação em Música Electrónica da Universidade de Aveiro, Rafael é de fato um vizinho – seja pelo espaço que habitamos em Porto Alegre, seja pelos interesses de pesquisa. Sorte minha, e agora sua.
Dias depois do meu exame de qualificação e pouco antes de embarcar para o estágio doutoral no Reino Unido, enquanto esperávamos a entrega de um xis (sanduíche bem característico do Rio Grande do Sul), gravei a conversa a seguir. Falamos de fonografia, composição de paisagens sonoras, Murray Schafer (ele o entrevistou e tem vídeo abaixo), eletroacústica/acusmática, e também quando e como pesquisas envolvendo gravações de sons ambientais começaram a tomar fôlego no Centro de Música Eletrônica da UFRGS. Bom proveito!
O conceito de paisagem sonora permite tantas associações que tem gente que nem imagina que compositores podem compor paisagens sonoras. Então a minha pergunta é: paisagem sonora chega a ser um gênero musical?
Hum… Boa pergunta. Sim, é um gênero musical, na minha opinião.
Mas desde quando?
O (R. Murray) Schafer pensou originalmente que tu tratasse a paisagem sonora como uma composição. Mas isso com o propósito de alterá-la, para que ela fosse agradável no dia a dia. Mas acho que ele tomou isso como um ponto de vista de um compositor que olha para aquilo para analisar, mas não como um compositor sendo criativo para aquilo, com aquilo. Acho que o começo disso se dá mesmo com a ideia de contexto. Porque antes disso tu tem o Luigi Russolo, tem toda a companhia limitada usando os ruídos do cotidiano para a composição. Mas isso não traduziu o contexto. Acho que o Schafer introduz é essa ideia do contexto e que ele usa nas suas próprias composições. Composições que, apesar de não serem gravações, ele compõe para lugares específicos. Tipo um lago no Canadá, em que as pessoas se encontram uma vez por ano, na mesma estação, para apresentar a mesma obra. É uma ópera que acontece com cantores em diferentes espaços do lago. Então ele acaba se utilizando da própria paisagem para gerar a composição dele.
Mas acho que o gênero de composição de paisagem sonoras surge mesmo é com os colegas dele, com o Barry Truax e com a Hildegard Westerkamp. A Westerkamp disse que já trabalhava antes. Ela já tinha esse pensamento de trabalhar com os sons do cotidiano antes de fazer parte do projeto. Mas não conheço nenhum trabalho dela antes disso, só conheço a partir disso. Ela talvez seja a que mais funda o que depois vem a se ramificar na fonografia, nos trabalhos que realmente começaram a utilizar o som até em galerias de arte, e tudo mais. Porque ela passa a usar o som dentro do contexto para propor diferentes escutas, conduzindo a pessoa até a abstração, o que seria considerado, digamos, um movimento mais musical. A música seria uma abstração da realidade e, por isso, no momento em que tu torna uma realidade gravada em uma abstração, aquilo se tornaria mais musical. Acho que essa é a ideia.
Também entra na questão do Truax, que é a comunicação: o quanto, a partir da utilização do processamento, de ocultar do ouvinte certas informações que estão na gravação original, propicia a ele relacionar àquilo as próprias memórias, as próprias experiências. Acho que, com isso, ele também busca essa ideia de abstração, de ser mais musical. Por isso acho que sim, é um gênero de composição. E é um gênero passível de ser muito musical, consoante à competência do compositor.
Desde quando você compõe paisagens sonoras?
O meu primeiro trabalho que usava o contexto (porque demorei bastante a fazer composição só de paisagem sonora) foi a peça “Música para piano e eletroacústica”, que é de 2006. E o trabalho foi sobre uma gravação do Fernando Mattos, um registro de campo dele, em que ele gravou o movimento dos carros passando ali na reitoria da UFRGS. Eu fiz uma ligação disso com um tema musical do Bruno Kiefer, que era o “Terra Selvagem”. Era uma brincadeira de que a “terra selvagem” seria esse nosso contexto urbano. Usei o contexto da rua, mesmo. Inclusive recontextualizando os sons dos carros, passando para o instrumento – para o piano, no caso.
Se isso foi em 2006, você estava por sair da graduação. Então seu primeiro contato com esse tipo de composição foi aí?
Na verdade, o contato com paisagens sonoras se deu mesmo antes, em 2003, que foi quando o Fernando Mattos fez esse projeto, chamado Sons na Universidade. Ele gravou sons em diferentes lugares da universidade e levou para o Centro de Música Eletrônica da UFRGS [CME], onde eu trabalhava, para trabalhar esse material lá. E ele fez uma instalação sonora no Museu da UFRGS com esse material. Eu era o bolsista responsável por ajudá-lo. Junto com isso, ele propôs que cada um dos envolvidos com o projeto – que éramos eu, o Eloy [Fritsch, coordenador do Centro], o James Corrêa, que o ajudou com as gravações de campo, e ele – compusesse uma peça usando os sons captados. Mas esse meu primeiro contato com esse material foi do ponto de vista de músico eletroacústica. Não foi preservando o contexto, efetivamente. Foi trabalhando um contexto sobre as vozes ou sobre algum ruído. Teve mais uma ideia eletroacústica. Nessa peça de 2006, não. Eu usei mesmo o contexto dos carros, como se tu estivesse parado no meio da rua, refletindo sobre aquilo ser a “Terra Selvagem” do Bruno Kiefer.
Às vezes parece que paisagem sonora e eletroacústica são a mesma coisa, às vezes parece que são intersecções, às vezes parece que são distantes. Como é que tu faz a relação entre as duas coisas? E se isso é algo generalizado ou é parte de ti.
Nesse sentido, acho que tem a ver com a origem do pensamento da composição. Não acho que necessariamente tenha a ver com o resultado final. Por exemplo, Francis Dhomont é um compositor canadense que trabalhou com Pierre Schaeffer, em Paris, e que trabalhou no Canadá justamente a questão das paisagens sonoras. Ele saiu da música concreta, que buscava justamente tirar o contexto dos sons e trabalhar os sons como eles próprios, ou seja, dentro do universo eletroacústico, digamos assim. E, ao mesmo tempo, ele trabalhou com o contexto dentro da paisagem sonora. Ele não julga que as obras dele sejam paisagem sonora. Ele trata como música acusmática, que era o que o Schaeffer e depois o [François] Bayle veio propor. Mas tem um contexto preservado ali, uma sugestão naquele contexto. E se tu escutar, por exemplo, a obra dele “Figures of the night”, feita para rádio, tu tem o mesmo tipo de composição que a Hildegard Westerkamp faz.
Foto: Sofia Cortese (2016)
Talvez esteja aí a confusão para o ouvinte. Porque são muitos termos, e às vezes para o ouvinte parece ser o mesmo tipo de produção.
Sim. É que, por um tempo, os ambientes em que essa produção circulava era muito seccionado e as pessoas tinham dificuldade em permear esses ambientes. Hoje em dia, não. Compositores circulam nesses meios muito facilmente.
Mas, aí, ficou que nome? Quando você diz “estou fazendo uma paisagem sonora” ou “estou fazendo uma peça acusmática”. Tem confusão até no meio mais especializado, né?
Tem, tem. A acusmática normalmente é a que tem esse pensamento mais do processamento do som pelo próprio som, e não pelo contexto. E o da paisagem sonora é o contrário: tu processa o som para promover o contexto, ou para promover uma discussão sobre o contexto em que aquele som está acontecendo.
A acusmática vem um pouco também da história da escola pitagórica, né?
Sim. Começou com o Schaeffer, que propôs essa escuta desprovida do contexto. Conta a história que Pitágoras costumava dar algumas aulas escondido por uma cortina, para que os alunos não percebessem a idiossincrasia dele ou as inflexões dele quando proferia o tema. Schaeffer propunha que a escuta dos sons que ele tirava do cotidiano fosse feita da mesma forma, ou seja, desprovida de todo o contexto no qual estava inserido. Aí tem uma confusão muito grande entre alguns compositores, que é o seguinte: o Bayle propõe essa escuta desprovida de origem, mas dentro do contexto do acousmonium, que é a orquestra de alto falantes dele, de inúmeros alto-falantes em torno da plateia. E o som, que é como o de Schaeffer – retirado de contexto, processado – é projetado no espaço, e ele cria movimentos no espaço. A ideia dele é que, como tu não vê esse movimento do espaço, tu o escuta, tu percebe o som dentro daquele movimento com uma ideia quase cinematográfica. Como algo que tem movimento, tem uma construção. Cria-se um novo contexto para aquele elemento. E às vezes os compositores confundem isso com a ideia de trabalhar talvez um pouco do contexto do som original, ou então ressignificar o som original dentro de metáforas, quando na verdade a ideia é justamente essa…
[Toca o interfone. É o entregador do X.]
Essa qual?
Essa de criar um novo movimento, um novo contexto para esse material.
Uma criação?
Uma criação, artificial.
[Pausa para o X.]
Bom, retornando agora com o X…
Curiosamente, quando eu fui na conferência da Society for Ethnomusicology, nos Estados Unidos, uma apresentação a que assisti era paisagem sonora de alimentos. Era um trabalho sobre a influência da paisagem sonora na comida das pessoas.
Bom, nós vamos depois, no futuro, ouvir essa entrevista e lembrar disso, de que a gente estava comendo um X.
[Risos e sons de talheres.]
Mais o som dos talheres, né? [risos]
E daqui a pouco vai ter o chomp-chomp…
Era curioso que, na apresentação, ela descrevia assim, tipo, “ah, num restaurante muito ruidoso, onde se ouvia muitos pratos, comumente as pessoas pediam determinados pratos; se tinha música, dependendo da música, isso influenciava não sei o quê”… Era um trabalho todo detalhado sobre a influência do som e música no ambiente de restaurante.
Foto: Rafael de Oliveira
“Por um bom tempo, as fotografias não eram consideradas arte, porque eram diretamente retiradas da realidade. A fonografia está mais ou menos nessa ideia. Os que fazem a fonografia ainda não se viram como criadores.”
Bom, a gente estava falando do que pode acabar sendo uma confusão entre termos. De repente as pessoas acham que tem um monte de coisa – e na verdade tem, porque há pensamentos distintos, diferentes – mas sonoramente elas são convergentes. Muito convergentes, talvez, para o ouvinte mais desavisado sobre todas essas correntes. Daí eu penso: paisagem sonora vai ser sempre ligada à corrente de pensamento do [Murray] Schafer?
A composição?
A composição. Entende?
[Pausa. Sons de talheres e copos.]
Eu acho que, na origem, sim. Os compositores que foram trabalhar com a paisagem sonora dentro dessa ideia que Truax introduz, de processamento para ligar a memória, etc, etc; ou Hildegard Westerkamp, incluindo narração, incluindo outros artifícios, como também um processamento, também criar um método de síntese… Acho que enquanto tiver raiz nesses trabalhos, sim. Vão acabar ficando ligados ao pensamento do Schafer. Mas acho que, por exemplo, o campo que está crescendo bastante, que é o da fonografia – e que para mim é composição, apesar de muitos deles não tratarem como composição, mas como um processo apenas de escuta e de construção de uma escuta; mas pra mim são composições – eles vêm desse espaço intermediário entre o que… Vou me remeter a uma arte: um espaço intermediário como o que as artes visuais têm entre a pintura e a fotografia.
É uma boa analogia …
Por um bom tempo, as fotografias não eram consideradas arte, porque eram diretamente retiradas da realidade. A arte teria que ser algo que propusesse uma discussão abstrata. E acho que a fonografia está mais ou menos nessa ideia. Os próprios que fazem a fonografia ainda não se viram como criadores. A Hildegard Westerkamp comenta que é o microfone que inicia o ato de composição. Acho que muitos deles ainda estão na ideia de apenas documentar. Acho que esse pensamento da fonografia não está ligado ao Schafer. Para mim, está vinculado a uma ideia de escuta, que é mais aberta. Acho que é uma mistura. Acho que é uma escuta que vem do Jonh Cage, que é uma escuta de deixar que os sons façam parte da minha composição e que o percurso que eu traço, ou o momento que deixo aqueles sons interferirem na obra, é que é a composição.
Por exemplo, o Abel Roland, que era bolsista aqui do Centro de Música Eletrônica, tem um trabalho que acho maravilhoso e ele nunca considerou composição. E, para mim, era composição, porque ele faz um percurso em torno do chafariz da Redenção. Ele inicia a gravação num ponto e ele finaliza a gravação num [ponto] final. Ou seja, é um trabalho de fonografia. Só que, nesse percurso, tu passa por diferentes musicalidades, diferentes grupos falando, diferentes grupos tocando música, até retornar a um mesmo espaço. Então tu cria aquela ideia de uma narrativa que te conduz musicalmente àquele espaço, te conduz pra frente, e não apenas enquanto registro, mas enquanto percepção estética.
A escolha do lugar ou a escolha do movimento, a escolha da hora de fazer isso, tudo isso seriam parâmetros para dizer que se trata de criação, de arte?
Sim. Para mim, a fonografia tem a mesma coisa que a fotografia tem, que é o ponto de vista. No caso, o ponto de escuta. Querendo ou não, está ali o compositor por trás daquilo. O fotógrafo está por trás da foto. Tu pode dizer que ele está retratando um fato, mas não está retratando o fato, pura e simplesmente. Tem alguém por trás daquilo escolhendo o ângulo. E na fonografia é a mesma coisa: a posição do microfone, a posição que ele se encontra em relação ao objeto, quais outros sons ele permite se inserirem naquele contexto. Isso, para mim, é um trabalho artístico, é um trabalho de escolha, um trabalho criativo.
Tu faz fonografia também?
Comecei. Recentemente, em 2014.
Foto: Sofia Cortese (2016)
“Para mim, a fonografia tem a mesma coisa que a fotografia tem, que é o ponto de vista. No caso, o ponto de escuta. Querendo ou não, está ali o compositor por trás daquilo.”
Alguma obra?
Em 2014, fiz minha primeira obra efetivamente de fonografia. É uma fonografia trabalhada, digamos assim. É uma inserção em que gravei três espaços durante uma chuva. Por exemplo, um espaço embaixo de um telhado de uma garagem – que não era bem uma garagem porque não era fechado, era só um telhado, assim… Gravei dentro de um apartamento, e gravei dentro do quarto em uma casa em que meus pais residiam.
Era a mesma chuva?
Não.
Outras chuvas…
Em diferentes tempos, em diferentes momentos…
Inclusive, antes de 2014?
Inclusive, antes de 2014. A primeira gravação é de 2009. A segunda gravação, 2010. E a terceira é de 2012. E o que fiz foi perceber que o percurso que elas faziam era semelhante. De começar com uma chuva que é leve, se tornar uma chuva torrencial e depois acabar. E, no momento em que ela acaba, tem uns sons residuais de [água] escorrendo pela calha e escorrendo pelo vidro, de pessoas voltando a caminhar na rua. Sincronizei essas gravações, e as sincronizei dentro do espaço da sala de concerto. Na parte da frente tem uma gravação, na parte central tem outra gravação, e na parte de trás tem outra. E elas [estão] todas sincronizadas. É interessante porque, quando apresentei pela primeira vez, eu não estava presente, mas uma das descrições que me enviaram era de que parecia tudo o mesmo ambiente, mas gravado de pontos diferentes. E, no entanto, não era. Então tem essa jogada, que é uma fonografia inventada, digamos assim.
E qual a diferença entre essa fonografia e uma paisagem sonora tua? O que entra em uma e, na outra, não? Qual a diferença entre esses dois processos?
Tenho uma obra de paisagem sonora chamada “Construção III”, que é sobre um prédio em construção. E esse prédio tem diferentes andares, que estão em diferentes momentos da construção daquele prédio. No topo do prédio, tem a parte de vigas, de concretagem, uma parte grossa e pesada de tirar toda a carcaça, os moldes das vigas. Os andares mais debaixo do prédio já estão na fase de finalização, de reboco, de pintura. Então tem esses diferentes andares. E o que eu fiz foi: para transitar entre esses andares e demonstrar os diferentes momentos em que o prédio estava, eu usava o processo da abstração que Traux propõe, por exemplo. Processar aquele som, para transformá-lo em outro e para a pessoa fazer uma conexão de movimento de um espaço pro outro. Junto com isso, também uso um dos outros artifícios que a Hildegard Westerkamp e outros compositores usam bastante, que é o de utilizar os passos, o som dos passos, para conduzir de um espaço a outro. Então também uso desse artifício para conduzir de um andar a outro, ou a quando ainda não tem os trabalhadores ali realizando a obra.
Esse sentido de usar o processamento para criar uma narrativa, para mim, é o que torna isso uma composição de paisagens sonoras. Porque justamente remete àquela ideia que Traux e Westerkamp propõem, que é propor a escuta abstraindo as coisas para que a pessoa mesmo crie o seu universo de escuta e vincule as memórias. E acho que a fonografia não parte desse processo de abstração. Ela parte do contrário, de deixar a coisa nítida para ti. E tua experiência é a de observar aquilo que está transparente sob teu próprio ponto de vista, sobre as tuas experiências, e não necessariamente fomentar as tuas experiências. É mais de propor uma escuta de um espaço, de outra forma.
Como é o nome dessas duas obras?
A obra da chuva se chama “Haiku”. Foi estreada em Barcelona em 2014, a convite de um compositor que estava fazendo uma obra cuja proposta era construir um contexto sonoro a partir de um som sintetizado completamente. Era uma instalação sonora em que, de tempos em tempos, tocava a minha peça da chuva, que ele achava que vinha a calhar. E a outra é “Construção III”. Ela tem um histórico dentro da minha dissertação e da minha tese de doutorado, que propunha a interligação entre paisagem sonora, música eletroacústica e instrumento musical acústico. Ela é a número três, mas na verdade é a número um. Mas isso é só porque foi a sequência de estreia, e não a sequência de datas.
[Sons de garrafa sendo aberta, líquido sendo servido e risos.]
O trabalho para essa composição era conseguir criar uma obra que unisse o instrumento musical em palco, e a música eletroacústica como mediadora entre o instrumento e a paisagem sonora. Porque o instrumento é completamente abstrato e eu não via métodos de unir um instrumento completamente abstrato com a paisagem sonora, que requer uma contextualização maior. Então pensei que a música eletroacústica, dentro desse pensamento acusmático, fosse possível criar um meio de campo ali. Um diálogo. Com essa ideia, foram três obras que criei. São, na verdade, sobre o mesmo material, que é essa construção, o ciclo-construção. Então, a primeira coisa que fiz foi gravar e estudar paisagem sonora. Passei dois dias no prédio em construção…
Aqui?
Não, em Portugal. Na cidade de Vila Nova de Gaia. Essa gravação se deu em 2007, em dois dias. Com esse material em mãos, fiz uma composição de paisagens sonoras. E aí, dessa paisagem sonora, extrai materiais para criar uma outra peça, para duo de pianos. Transformei aquele material da paisagem sonora – transformei, digo, a partir do meu ouvido, identificando notas e frequências que estavam na gravação, ritmos que estavam na gravação. Fiz uma notação musical disso e criei uma obra musical para dois pianos, tendo a mesma estrutura da paisagem sonora. Ficou uma peça independente, para dois pianos.
Saiu com a partitura, entregou para dois intérpretes e é isso, essa é a segunda criação. Mas não a segunda composição, em termos de estreia.
Isso. Tendo feito esses dois trabalhos – uma paisagem sonora e uma só musical – foi [feito] o processo de unir as duas coisas e criar uma peça para um piano e a paisagem sonora. São três peças. Elas são muito semelhantes porque realmente utilizam a mesma estrutura, o mesmo material musical, o mesmo material sonoro. Mas elas criam contextos bem diferentes. Na peça para piano e a paisagem sonora, tem gestos que antes eram feitos por um dos pianos, na parte da música, que na verdade eram uma tradução de movimentos que aconteciam na paisagem sonora. Na peça para piano e paisagem sonora, um complementa o outro. O diálogo está nessa complementaridade dos materiais, na tradução de um material paro outro.
Em ordem de estreia, as peças são numeradas I, II, III. Se a colocarmos agora em ordem de criação, fica como?
III, I, II. Porque o eletroacústico foi o último a ser estreado. Foi estreado aqui na Sala do Sons… Ah, não! Minto. Não foi na Sala dos Sons, foi na Bahia.
Vamos falar da Sala dos Sons, então. Quando você foi bolsista do Centro de Música Eletrônica da UFRGS, durante a graduação, o projeto já estava se desenrolando? Ou a Sala dos Sons se desenvolveu no período em que você estava em Portugal?
A Sala dos Sons foi bem depois, em 2009 ou 2010. Olha, é capaz de ser 2010, 2011. E fui bolsista na reestruturação do Centro de Música Eletrônica. Na reestruturação física e também no desligamento mais incisivo do CME com o LabMus, que era da Informática. Até 2001, a ligação entre o Centro de Música Eletrônica e o LabMus, o Laboratório de Música no Instituto de Informática, era direta. Boa parte da pesquisa acontecia na Informática e só as aulas vinculadas à Música aconteciam no Centro de Música Eletrônica. Eu entrei em 2001, e o Eloy finalizou o doutorado dele em 2002. Quando ele finaliza o doutorado dele, ao mesmo tempo é aprovado o projeto de reestruturação física do Centro de Música Eletrônica. Novos equipamentos são adquiridos, a estrutura física se transforma em diferentes laboratórios e o espaço passa a ser também dedicado à pesquisa. Eu não fui o primeiro bolsista de pesquisa deles, mas fui um dos primeiros a efetivamente desenvolver uma pesquisa que gera frutos, gera artigos, e sem estar vinculada à Informática. Ou seja, era mesmo da Música.
Em pé, Eloy Fritsch (ao centro) e Rafael de Oliveira, na Sala dos Sons, para o Concerto de Música Eletroacústica Brasil-Portugal em 2013 (Foto: Thaís Aragão)
Qual foi essa pesquisa?
Foi composição de música eletroacústica experimental. A ideia inicial foi criar uma série de programas que permitissem criar catálogos de sons, e com esses sons compor música. A primeira parte, que era realizar os aplicativos de processamento, eu realizei em 2004. Foi quando recebemos o primeiro prêmio de pesquisa na Feira de Iniciação Científica, em que apresentamos os aplicativos. Isso gerou um artigo que saiu no Simpósio Brasileiro de Computação Musical. Depois, em 2005, fiz a criação do catálogo do processo composicional e das composições, com base nisso. Com esse trabalho de tradução desse material para música, também fomos premiados em 2005 no Salão de Iniciação Científica, e não mais na Feira. Isso, como disse o Eloy, deu abertura para que a pesquisa crescesse, porque depois disso veio o Daniel Moreira e o Abel Roland, que também tiveram destaques no Salão de Iniciação Científica. Esse trabalho foi praticamente eu e o Eloy que conduzimos adiante, propondo essas questões.
Inserindo aí a questão da paisagem sonora: a paisagem sonora começa em 2003, com o Fernando Mattos, mas ela não se instaura lá. Foi só em 2005, quando Martin Heuser – que depois deixou de ser compositor e passou a ser artista em diferentes campos, na pintura, performance e tudo mais – entra no Centro de Música Eletrônica tendo escutado o trabalho de Fernando Mattos, tendo lido em outros espaços sobre paisagem sonora, e entra lá propondo para o Eloy que criássemos um projeto sobre paisagens sonoras. Eu me interesso também, e o Eloy se interessa, e então nós criamos um projeto com isso. O Rodrigo Avelar vem e se insere também nesse projeto. É onde, depois, o Abel [Roland] entra com a pesquisa dele, pela qual recebe a menção honrosa de que falei [na XVI Feira de Iniciação Científica da UFRGS]. Então foi só em 2005 que se instalou ali um projeto de paisagens sonoras. 2006 é quando realizo a peça. Então esse foi o meu percurso ali dentro. Eu me graduo e vou a Portugal, fazer mestrado e doutorado.