Estar “ancorada” no espaço doméstico pode trazer algumas oportunidades excepcionais de viver a cidade. Foi assim com o chegadinho em Fortaleza, e foi assim agora há pouco em Londres, quando passou uma carruagem fúnebre pela rua. Estava aqui lendo, quando escutei cascos de cavalos estalarem contra o asfalto, ritmadamente. Lindo de ouvir.
As imagens são frames do vídeo que consegui fazer, puxando rapidamente o celular e indo à janela atrás de mim, tão logo me dei conta de que, ei!, se tratava de algo sui generis na vizinhança. O vidro estava suado porque nevou ontem à noite e hoje de manhã, e embaixo da janela está o aquecedor. As imagens de perto ficaram menos nítidas. Quando consegui achar uma brecha no bafo, a carruagem já ia longe.
O esquife de vidro seguia vazio, levado por dois cavaleiros de trajes escuros e por dois cavalos negros bem formosos, cada um com uma pena preta na testa. Essa cena teria passado despercebida pelas minhas costas, se não fosse pelos trotes, que não sei descrever porque não conheço as variedades desses andamentos. Mas aqui vai o áudio do vídeo do celular.
Nos últimos dez dias, tenho estado na sala de estar, trabalhando na escrita e organização de dados enquanto espero encomendas. Deixei para o início de janeiro, meu último mês de mobilidade acadêmica e também um período meio parado em Londres, a tarefa de comprar o máximo de livros que podia pela Amazon. Assinei o serviço de entregas rápidas deles, que tem gratuidade no primeiro mês de teste. Antes de ir embora, cancelo. Táticas de sobrevivência do estudante no Exterior.
Daqui da sala de estar é mais fácil ouvir o entregador ou o carteiro baterem à porta no andar de baixo, porque não há campainha. E esta casa inglesa é assim: mora-se na casa de cima, mas a porta é embaixo, descendo a escada, ainda que sem ligação com a casa do térreo. Pedi à minha colega de apê que escrevesse uma mensagem simples para colocar do lado de fora. Ela nem colocou um ponto de interrogação no fim da pergunta “Could you knock loudly?” Como o verbo modal no início da frase já indica o tom da sentença, acho que eles vão esquecendo. No português, é comum só saber que uma frase é de fato uma pergunta no fim da leitura. Quem nunca teve que repetir para acertar o som, quando estava aprendendo a ler em voz alta?
O que é “bater alto à porta”? Cada entregador – e foi quase uma dezena deles até agora – parece ter uma ideia diferente do que seja isso. Ou, pelo menos, uma performance distinta. Para uns, é bater alto mas lento. Para outros, é bater alto mas rápido. Teve aquele que, quando nos vimos, estava com uma cara retorcida de receio de estar sendo muito rude. Já outros, acho que não tentaram bater alto mesmo, não. Ou tentaram, mas passou longe de soar alto. Teve entregadores com feições árabes, indianas, africanas, nórdicas, e um português que já suspeitava que eu falava a língua dele, só por causa o “ão” no fim do nome no pacote.
A maior parte das encomendas são livros para incrementar a biblioteca de estudos de som e mídia com títulos estrangeiros. Principalmente aqueles que não está dando para encontrar em bibliotecas brasileiras ou na internet. E que não são vendidos diretamente para o Brasil. Quando são, o frete chega a ser mais caro que o exemplar. Nos últimos anos, tenho recorrido a amigos na Europa que, muito prestativamente, compram livros de que preciso e os remetem para mim. Se não fosse por eles, a pesquisa não estaria no estágio em que se encontra.
O plano agora é ter alguns anos de trabalho pela frente, mesmo depois do doutorado, e ainda que não apareça incentivo a esse tipo de pesquisa no Brasil. O investimento foi grande, e seria muito bom ter uma taxa de bancada, mas a bolsa não cobre isso. Nesse aspecto, estou por minha conta. With a little help from my friends.
:: Este doutorado sanduíche está sendo financiado pela Capes – Ministério da Educação do Brasil, por meio do Programa Professor Visitante do Exterior do Ciência Sem Fronteiras ::