“Os passos de uma multidão de atarefados, o rangido das rodas que esfregam a sua circunferência dentada umas contra as outras, o grito do vapor que escapa das caldeiras, as batidas regulares do trabalho, o rolamento pesado dos carros que se cruzam. Estes são os únicos sons que constantemente golpeiam seu ouvido.” (Alexis de Tocqueville, 1835)
Estes são aspectos exteriores de Manchester como descritos pelo proto-sociólogo e proto-cientista político francês, em suas notas de viagem à Inglaterra. Engels ainda nem tinha ido morar lá. No mês passado estive em Manchester para apresentar paper na conferência acadêmica Challenging Media Landscapes, na Universidade de Salford. Claro, aproveitei bastante o tempo para estar do lado de fora, tentando captar as sonoridades dos lugares.
Hoje Manchester não soa mais assim. Ao contrário daquele momento há 180 anos, em que era a única de seu gênero, agora até parece soar como muitas outras cidades (embora o mais provável é que estas é que soem como Manchester). Ouve-se máquinas e ritmos laborais, mas são mais da construção civil, dos melhoramentos das vias públicas e de um tráfego urbano que conta, cada vez mais, com carros elétricos, ônibus e trens menos ruidosos. Os países do capitalismo central estão se desindustrializando, e a produção mais relevante nesses territórios está atualmente relacionada ao conhecimento, à propriedade intelectual. E esse trabalho tem outros sons.

A própria Universidade de Salford está no centro de um novo complexo da Grande Manchester chamado MediaCityUK. A BBC, por exemplo, tem ali instalações onde trabalham mais de duas mil pessoas. Com museus e galerias, escritórios e edifícios residenciais, o projeto geral é um assentamento de oitenta hectares para atividades baseadas em “criatividade digital, aprendizado e lazer”, à beira de um espelho d’água que antes fazia parte do porto e das docas da metrópole. O plano é dobrar a área em dez anos, ao custo de um trilhão de libras.
Aí abaixo vão alguns registros fotográficos da minha passagem pelo MediaCityUK, feitos pelo nigeriano Shepperd Mpofu, professor da Universidade de Johannesburgo e PhD em estudos de mídia. Ele apresentou trabalho sobre jornalismo cidadão e identidade nacional no Zimbabwe e, de quebra, acabou se tornando o jornalista de plantão da conferência, reportando tudo. Ao contrário do encontro da AoIR em Berlim, havia muita gente da África subsahariana e Oriente Médio na Challenging Media Landscapes, o que deixou mais interessante o panorama das pesquisas.
Para além dessa ilha de investimento, há muitas outras referências espaciais da cidade. Decidi me orientar pelas trajetórias das bandas de Manchester que marcaram o cenário da música pop entre o fim da década de 1970 até os anos 90. Grosso modo, o burburinho começa com Joy Division, passa por The Smiths e New Order, fechando um ciclo com Oasis. Encontrei alguns serviços de passeios temáticos a pé, mas preferi o Manchester Music Tours.
Imaginei que três horas a bordo da van amarela seria suficiente para ter uma noção geral do espaço da cidade e para ter acesso rápido a lugares mais distantes entre si, como cenários citados em letras e pontos de encontro das pessoas que fizeram a cena. Depois eu poderia ia sozinha a alguns deles, para fazer gravações de campo. O guia era, ele mesmo, um nome na cena de Manchester. Baterista do Inspiral Carpets, Craig Gill levou o grupo de que fiz parte por um circuito sobre Smiths. Aí embaixo, Gill aparece nos mostrando a casa de Morrissey, onde em 1982 Johnny Marr bateu à porta para ouvir uns discos e finalmente perguntar ao jovem Steven Patrick se ele não queria montar uma banda.
Fomos um dos últimos grupos que Craig guiou. Ele faleceu dez dias depois, aos 44 anos.
O ocorrido reforçou o sentimento que tive de que Manchester é feita de muitas ausências, sentimento este que me marcou tanto quanto a impressão de uma certa ambiguidade no jeito de ser das pessoas, muito intrigante. Gostaria de escrever mais sobre isso, mas é meio complexo e faltam poucas horas para o fim de 2016. Senti que devia escrever sobre Manchester antes do ano findar. Fico devendo. Também não vai dar tempo selecionar algumas gravações tomadas pelo território mancuniano (o gentílico da cidade), então farei isso em um post futuro.
Mas não posso deixar de citar o festival Sines & Squares, só sobre síntese modular e analógica. “Mas o que é isso”, alguns perguntarão. Sabe sintetizadores? Pois é. Viu como é simples? É isso. Assisti a uma programação maravilhosa de performances baseadas em sons sintetizados, além de um dia inteiro de apresentação de papers que me fizeram entender melhor – em termos teóricos – como as pessoas que lidam diretamente com esses artefatos entendem o som das máquinas. Tive vários insights muito bons para a tese. De quebra, essa sessão aconteceu nas dependências da Universidade de Manchester, exatamente do lado do prédio onde Alan Turing deu aulas. Absolutamente inspirador!
:: Este doutorado sanduíche está sendo financiado pela Capes – Ministério da Educação do Brasil, por meio do Programa Professor Visitante do Exterior do Ciência Sem Fronteiras ::
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