É, eu sei que vai ficar meio pesado fazer duas postagens seguidas em cima de leituras de filosofia francesa do século XX.
Mas é que senti falta do Brasil…
Estava lendo ontem a edição em português-francês do texto “As heterotopias” (N-1 edições, 2013) e tive um sobressalto quando cheguei àquela parte em que Michel Foucault mencionaria os quartos para viajantes nas casas de outrora. Já não havia a referência direta ao país, mas apenas ao contexto geral da América Latina. Ué…! Daí uni essa inquietação a outra que havia tido quando o livro chegou até mim: esse texto tinha mesmo esse título?
Fui pesquisar e acabei sabendo de algumas coisas que talvez não sejam novidade para quem está mais avançado em Foucault. Mas resolvi compartilhá-las pensando nas pessoas que, como eu, estão se deparando pela primeira vez com os distintos modos como foi exposta essa ideia das heterotopias (“utopias que têm um lugar preciso e real”) – uma noção muito influente, embora seu autor tenha se ocupado menos dela do que desejaríamos.
Surpresa: esse pensamento veio a público pela primeira vez por meio da própria voz de Foucault, e não pela escrita. Nos dias 7 e 11 de dezembro de 1966, o filósofo participou do programa produzido por Robert Valette na rádio France-Culture, proferindo duas conferências que, editadas, são a fonte da recente edição bilíngue. As falas também foram lançadas em CD em 2004, na série Mémoire Vive do selo INA. A parte sobre as heterotopias está no YouTube.
“Utopias que têm um lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa”: heterotopias.
Na Tunísia, Foucault colocaria essas ideias no papel, sob o título “Des autres espaces”. Foi uma versão desse material que li, e é nele onde aparece mais literalmente o quarto dos viajantes nas antigas residências brasileiras como exemplo de heterotopia (aliás, cadê a pesquisa histórica sobre isso pra gente ler?). Tal texto foi a base da fala do filósofo a uma plateia de arquitetos no Cercle d’études architecturales, em Paris, três meses depois das radioconferências.
Mas as discussões sobre heterotopias são relativamente recentes, uma vez que o pensador só autorizaria a publicação do manuscrito poucos meses antes de falecer, em 1984. Naquele mesmo ano, o texto entrou em domínio público numa exposição realizada em Berlim e foi publicado pelo periódico Architecture /Mouvement/ Continuité. Esse link aí dá acesso ao texto em francês e em inglês.
Em português, ele aparece como “Outros espaços” no terceiro volume de Ditos e escritos – Volume III (Forense Universitária, 2001), como “De espaços outros” no periódico Estudos Avançados (vol.27, 2013), e de uma forma ou de outra em algumas traduções mais ou menos amadoras pela internet.
O que transborda
Na edição bilíngue da N-1, os editores dizem que “Des autres espaces” (manuscrito) é uma versão reduzida de “As heterotopias” (transcrição com base na radioconferência). Mas não é bem assim.
Na palavra falada, Foucault chega a ser bem mais direto em alguns aspectos, como na própria definição de heterotopia, em destaque mais acima. Por outro lado, é reservada à palavra escrita uma introdução importantíssima sobre a questão do tempo e do espaço, à qual estruturalismo e fenomenologia comparecem nominalmente. Não vou me aprofundar por aqui, mas apenas dar uma palhinha do que esse grande autor traz de contribuição para se pensar o espaço – uma dimensão, diga-se de passagem, fundamental para sua concepção de poder.
“O próprio espaço tem uma história, e não é possível ignorar esse entrecruzamento fatal do tempo com o espaço.” Foucault
Para Foucault, “a época atual seria talvez sobretudo a época do espaço”, um espaço que é muito mais simultaneidade e movimento do que fixidez e homogeneidade. No entanto, não é que o espaço seja uma novidade. “Não é uma invenção.” Tem a ver com a mudança na forma como o vivemos e o concebemos enquanto passamos por nossas próprias revoluções – uma vez científica, agora informacional.
O espaço, hoje, se define mais por relações do que por extensões ou localizações. Mas, a despeito da abertura promovida por Galileu e da atual possibilidade de se guardar todas as coordenadas de nossa vivência, nele permanecem inauditas presenças do sagrado: ainda há mistério. Por isso, as heterotopias. Para pensar espaços outros, contraditórios, fora de todos os outros lugares mas que os refletem e estão aí, realizados em alguma parte, ao mesmo tempo altamente racionalizados e porosos à fantasia e à fabulação. Sejam eles jardins, cemitérios, navios… ou alephs!
“Aclaró que un Aleph es uno de los puntos del espacio que contienen todos los puntos.” J.L.Borges
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