
Estar imersa no mosaico de formas, ritmos e intensidades de São Paulo já é, por si só, uma grande experiência estética. Mas a gente não vai perder a oportunidade de visitar as exposições que estão rolando, não é mesmo? Em dezembro do ano passado, estava na fila para a concorrida exposição de Ron Mueck quando acabei vendo passar um vendedor de biju.
Ao interpelá-lo para uma foto, o rapaz disse que estava com pressa, pois havia se comprometido a levar o segundo lote do biscoito que trazia para outro colega vender – e estava a caminho! Esse tipo de associação entre vendedores, para buscar mercadoria em outros pontos da cidade, também encontrei na pesquisa em Fortaleza.
Depois da Pinacoteca, peguei a Bienal em um dos últimos dias da 31a. edição, “Como falar de coisas que não existem”. Mas foi percorrendo a mostra Cidade Gráfica, no Itaú Cultural, que tive a surpresa de encontrar uma obra que tinha tudo a ver com o trabalho do mestrado: o Atlas Ambulante.
Nesse trabalho de cartografia ambulante encontrei fartas informações sobre um vendedor de biju de Belo Horizonte. O relato dele está reproduzido no fim deste post. O projeto se desdobra em exposições, documentários e também em um livro, que pode ser adquirido na loja virtual da revista Piseagrama. Ora, se não são os editores dessa – ótima! – publicação os responsáveis pela obra!
Trata-se de uma dupla: Renata Marquez e Wellington Cançado. Ela, doutora em geografia e professora de análise crítica da arte na Universidade Federal de Minas Gerais. Ele, arquiteto e professor de design e arquitetura também na UFMG. Realizaram o Atlas Ambulante por meio da Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre as interfaces dos conteúdos artísticos e culturas populares, concedida em 2010, e do co-patrocínio da Mostra de Design de Belo Horizonte.
“São sujeitos cartográficos (…) sujeitos-com-uma-geografia.” Renata Marquez
O livro está centrado nas experiências de seis trabalhadores ambulantes pelas ruas da capital mineira. Os ofícios: vendedor de biju, amolador de facas, vendedor de pirulitos, empalhadores e restauradores de cadeiras,vendedor de algodão doce. Além de falarem de suas ocupações (preservemos aqui o caráter ambíguo desse termo), eles ainda fizeram fotos ao longo de seus percursos.
Algumas dessas imagens estão registradas nas páginas do atlas, compondo um conjunto excepcional que ainda traz mapas detalhados, receitas, partituras e outras representações gráficas dos pregões, reproduções dos objetos dos labores em escala 1:1 (tamanho real). O documentário ainda vem no DVD encartado! O que mais se poderia pedir? Talvez um artigo introdutório de Marquez, que parte de uma conversa com um vendedor ambulante de… mapas!
“Tanto Renato quanto outros homens e mulheres (…) praticam uma cartografia que fica sem registro, que não é notada nem entendida como prática espacial e sim tolerada – mas nem sempre – como prática comercial do setor informal, alimentando indiscriminadamente as análises estatísticas. Para cada um deles corresponderia um mapa, uma rota de percepções e ações que singularizam a experiência urbana. São sujeitos cartográficos que acrescentam à noção de sujeito-com-uma-história a ideia de sujeito-com-uma-geografia”, ela escreve.

Meu nome é Antônio.
Eu vendo biju há 19 anos, desde a última vez que voltei a trabalhar com isso. Quando eu tinha 18 anos, meu pai montou uma fábrica de biju. Eu e os meus irmãos vendíamos. Depois que meu pai faleceu, paramos com a fábrica e fomos trabalhar fichados. Depois voltei a vender biju em 1991. Se você fabricou o biju de manhã, sabe que à tarde está com o dinheiro na mão. Não sabe quanto, mas todo dia você tem algum. Se você tem disposição para trabalhar, você anda muito, mas compensa, é muito melhor do que trabalhar fichado. Somos cinco irmãos e um sobrinho que trabalhamos com o biju. Só meu sobrinho vende no sinal, os demais vendem andando na rua, como eu.
Andamos muito. Vamos supor: eu passei nessa rua aqui hoje. Às vezes eu nunca tinha passado nessa rua, mas, se hoje eu passo, eu vendo. A pessoa fala: “Moço, tem muito tempo que eu não compro biju, passe por aqui mais vezes”. Aí, o que acontece? Se sei que ela já comprou, eu passo lá mais vezes. Vou escolhendo as ruas assim. Acontece também de eu passar em ruas que nunca passei e conhecer novos clientes. Passamos numa rua e vendemos para um cliente e, às vezes, outro cliente está a uns dois quarteirões à frente. Aí precisamos passar nele também para ver se ele quer. Pode acontecer de passarmos e ele não estar lá ou, às vezes, não querer comprar no dia, mas, naquela rota para chegar naquele cliente, costumamos vender para outras pessoas que estão de passagem. Às vezes a pessoa passa perto de mim e fala: “Moço, há quanto tempo não vejo biju. Eu ainda era criança…” Aí eu falo o que os antigos me contam: que o biju existe em Belo Horizonte há cerca de 80 anos.
“Vou escolhendo as ruas assim.”
O biju é feito com farinha de trigo, açúcar e água, não tem mistério. Antigamente, o biju era feito no carvão, num fogão grande. A partir de 1991, começamos a fazer o biju no fogão a gás, regulando na pressão que queremos. Vendíamos biju na unidade em vez de no pacotinho fechado, só que tinha um problema: se fizesse frio, a gente fazia o biju de manhã e à tarde já podia jogá-lo fora se não vendesse, porque ele murchava. Hoje não, a gente põe no saquinho e fica fechadinho. E levamos os pacotes no tambor, porque o tambor vai guardá-lo para durar mais tempo. Hoje a gente faz o biju de manhã e pode vendê-lo com 5, 6 dias que ele ainda está torradinho. Antigamente, o tambor tinha uma roletazinha na tampa, mas dessa época não me lembro. Falam que eram números de 1 a 10. A pessoa pagava na época certa quantia (o dinheiro era outro, não é mesmo?) e rodava a roleta. O tanto que saía era o tanto que levava.
Tenho dois tamanhos de tambor. Um tambor maior para vender biju nos sábados, domingos e feriados, porque cabe uma média de 93 pacotes. E um outro menor, que carrega 64 pacotes, para trabalhar durante a semana. O tambor é feito com um tabuleiro de alumínio para bolo que vira uma tampa e um tambor de papelão. Não pode ser um material pesado, pois, como andamos em média 30 km por dia, não tem como carregar um material pesado.
“Estava cansando muito a mão, mudei o jeito de bater. O barulho também depende da madeira.“

É importante você saber como carregar o biju, pois ele fica todo empilhadinho e é muito frágil. Até o jeito de colocar o tambor na calçada para atender o freguês é importante. Porque, se eu colocar o tambor virado para lá, ele vai tombar e quebrar. Sempre coloco o tambor inclinado um pouco para o meu lado e vou tirando sempre do lado de lá. A cor azul do tambor vem da tradição de quando meu pai tinha a fábrica, porém era um azul mais forte um pouco. Depois que eu e meus irmãos remontamos a fábrica, resolvemos usar esse azul mais claro.
O biju tradicional é vendido com a ajuda da matraca. Sem a matraca, eu não vendo nada, fico sendo um vendedor sem o equipamento completo! A gente passa na rua batendo e o pessoal às vezes está lá no andar de cima do prédio, escuta e já sabe que é o vendedor de biju. O algodão doce é a buzina e o biju é a matraca… Essa aqui deve ter uns 2 anos. Esse ferro tem 19 anos, desde quando eu recomecei. De tempo em tempo tem que trocar a madeira porque ela vai batendo e soltando lasca.
No começo, eu batia a matraca de outro jeito, mas, como estava cansando muito a mão, mudei o jeito de bater. O barulho também depende da madeira. Se ela for mais velha e ressecada, o barulho fica mais agudo. Se for uma madeira mais nobre e verde, o barulho fica mais fraco, abafado. Tem cliente que desce do prédio porque já me reconhece pelo barulho da matraca, pelo jeito particular de bater a matraca. Cada um dos meus irmãos bate a matraca de um jeito diferente.
* Textos e imagens do Atlas Ambulante estão registrados sob Licença Creative Commons [CC BY-NC 3.0 BR]