A foto acima foi tirada na Esplanada dos Ministérios, durante a Marcha de Brasília na Jornada Nacional de Lutas, quando também fiz a gravação abaixo.
Estes são tempos de ir às ruas. Nos últimos anos, lá fui eu, como vocês sabem, conhecer os vendedores de chegadinho. Minha atenção foi atraída e guiada até eles por um som em particular: o do triângulo. Mas eis que me surpreendo com o fato de que recentemente, para além do recorte de minha pesquisa, venho observando o aparecimento desse instrumento de percussão em outras ocasiões, igualmente em contextos de territorializações em espaços públicos.
Ano passado, este rapaz da foto acima passou ao meu lado tilintando seu triângulo. Ele estava no canteiro central da Esplanada dos Ministérios e a foto foi tirada do asfalto, onde eu estava cercada por camponeses sem-terra, servidores da educação e da saúde, entre outros manifestantes vindos de todo o Brasil. Isso aconteceu durante a greve das universidades federais que precedeu a grande paralisação de 2012.
Já em junho passado, no bairro onde moro aqui em Porto Alegre, me encontrei com colegas da área da Cultura numa manifestação contra a proibição sumária de música ao vivo nos bares da Cidade Baixa pela prefeitura. E lá estava um outro rapaz tocando seu triângulo.

Essa manifestação foi reflexo de um conflito atual entre vários grupos em relação aos usos que se dá ao espaço e aos limites entre público e privado, entre direitos e deveres. Há donos de estabelecimentos com diferentes visões sobre que práticas seriam aceitáveis ou desejáveis para o local, há moradores com diferentes expectativas, vereadores idem, da mesma forma como acontece com quem visita a vizinhança. Esta, por sua vez, tem seu próprio histórico boêmio: palco dos antigos carnavais de Porto Alegre, lugar onde nasceram compositores como Lupicínio Rodrigues.
Os motivos da insatisfação da classe artístico-cultural, que encontra eco no meio universitário, foram expressos da seguinte maneira pelo recém-aglutinado movimento Defesa Pública da Alegria: “Porto (ex-) Alegre se tornou uma cidade que arranca as pessoas de suas casas em nome de um campeonato de futebol, que esvazia de gente as ruas e praças, que persegue a música e qualquer forma de arte nas ruas e nos bares, que mutila parques e impõe um viaduto na beira do Guaíba – sabia? – em nome da falida cultura do carro, que abandona o transporte público e a bicicleta e orgulha-se de sua ciclovia de 400 metros”. Na semana passada, o movimento realizou manifestação com música, teatro, dança, em frente à prefeitura municipal da capital gaúcha. Infelizmente, o dia não terminou bem.
Ontem, a Defesa Pública da Alegria esteve novamente ao Centro. E não é que mais um triângulo apareceu?

Neste vídeo é possível ouvir o som do evento.
Bom, está em discussão uma ampla e complexa questão sobre a cidade brasileira, que passa pela especulação imobiliária, pela falta de transparência e de participação da população nas decisões sobre parcerias público-privadas, pelo peso e interconexão das escolhas individuais e governamentais na problemática da mobilidade, pela forma como se define o uso do solo e se faz a gestão do território. Interessante como som ambiental e atividades culturais não são apenas outros pontos nevrálgicos a tornar mais pungente esse contexto, sendo eles mesmos acionados para abrir um campo de debate coletivo sobre processos urbanos contemporâneos.
É muito difícil ficar alheio a essa circulação e reverberação de ideias, que começa no íntimo, encontra repercussão nas redes sociais, chega às ruas. Mas quando me dou conta de que um triângulo – não um megafone, não uma vuvuzela, não um apito, não um tambor – está sendo tocado por alguém no meio desses acontecimentos é algo que acaba me tocando também, de um jeito muito especial.