Encontrei um texto muito interessante, rico e conciso sobre filosofia da mídia, gentilmente cedido pela autora para tradução aqui no blog. Hoje professora do Centro de Comunicação e Computação da Universidade de Copenhagen, Taina Bucher o escreveu quando ainda era estudante de doutorado. Entrei em sintonia não apenas com essa voz de estudante de PhD dela como também com o espaço-tempo que Bucher compartilha, pois ela estava participando de conferências e lendo materiais importantes justo quando acontecia um balanço de uma década inteira de debates sobre filosofia da mídia em língua alemã. Na época, eu estava dedicada ao mestrado em Planejamento Urbano e Regional e nem sonhava que um dia me interessaria tanto por esse tema, nem que ele tomava consistência. Mas Bucher estava ali para registrar as questões daquele momento.
Isso não significa, porém, que os autores citados por Bucher no texto abaixo sejam desconhecidos no Brasil. Mike Sandbothe teve um texto publicado ainda em 1996 no Caderno de Filosofia e Ciências Humanas do Unicentro Newton Paiva, de Belo Horizonte. Em 2010, Frank Hartmann esteve em São Paulo, onde ministrou curso sobre teoria e epistemologia da comunicação na USP e proferiu a palestra “Towards an aesthetics of communication” a convite da PUC-SP. Sibylle Krämer veio ao país em 2012, para participar do simpósio internacional “A Vida Secreta dos Objetos: Medialidades, Materialidades, Temporalidades”, que percorreu quatro capitais e envolveu diversas instituições universitárias. Já Dieter Mersch esteve em Natal em 2013, para a conferência de abertura do II Encontro Nacional da Rede de Grupos de Pesquisa em Comunicação.
Apesar da ressonância em território nacional, a reunião desses estudiosos nesse debate mais específico pode passar batido a alguns estudantes. Sem contar que é possível também confundir essa discussão com as das teorias da mídia em contexto de língua alemã, pela proximidade que guardam. E é aí que entram as reflexões de Bucher enquanto doutoranda. Dois anos mais tarde, ela ganharia o prêmio da AoIR (Associação de Pesquisadores de Internet) pela tese “Programmed Sociality: A Software Studies Perspective on Social Networking Sites“, em que discute como o software em sites de redes sociais mediam e governam práticas cotidianas.
Enfatizando a filosofia da mídia
Taina Bucher (2011)
Filosofia da mídia tem sido um tópico do presente debate que ocorre no âmbito da academia em língua alemã pelo menos desde que Frank Hartmann publicou um livro sobre o tema no ano 2000. Ao longo da última década, a filosofia da mídia tornou-se um campo discursivo debatido ao longo de fronteiras disciplinares. Embora a filosofia da mídia seja rotulada como uma indagação interdisciplinar, ela tem sido pensada mais como uma subdisciplina da filosofia do que como estudos de mídia. Bastante específica ao contexto da língua alemã, muitos estudiosos têm contribuído ativamente com os debates sobre filosofia da mídia. Além da publicação de Hartmann, Medienphilosohie, Mike Sandbothe vem com frequência defendendo uma filosofia pragmática da mídia. Foi então que, em 2003, Stefan Münker, Alexander Roesler e Sandbothe publicaram uma antologia com o objetivo de elucidar o termo filosofia da mídia. A maior parte dos colaboradores mostraram-se otimistas e afirmativos em relação ao estabelecimento da filosofia da mídia como uma disciplina ou discurso acadêmicos autônomos. Por outro lado, o filósofo Martin Seel, com bases em Frankfurt, laconicamente a viu como um “fenômeno de curta duração”, enquanto a socióloga italiana Elena Esposito a descartou por completo, não vendo qualquer necessidade real de se estabelecer um campo da filosofia da mídia. Muitos mais questionaram o termo filosofia da mídia, vendo-o apenas como mais um ajuste disciplinar, uma tendência ou moda acadêmica.
Se damos um passo para trás, porém, parece que aquilo que está em jogo é a concepção de que nem a filosofia nem os estudos de mídia conseguem se aproximar de reflexões filosóficas sobre mídia. Isto parece especialmente imperativo na era da medialização (por vezes também descrita em termos de midiatização) e das mídias digitais ubíquas. Embora reflexões sobre o que hoje entendemos por mídia não seja algo novo – consideremos, por exemplo, o “Fedro” de Platão –, tradicionalmente a mídia não tem sido vista como um objeto de estudo pela disciplina da filosofia. Talvez isso não devesse ser tanto uma surpresa, uma vez que os próprios estudos de mídia são um campo de estudo relativamente novo. Como poderia haver filosofia da mídia antes que o conceito fosse “inventado”? Por outro lado, basta considerar o excelente artigo “Genesis of the Media Concept”, de John Guillory (2010), para ver que essa questão não é tão simples.
O que é filosofia da mídia?
Então, o que seria filosofia da mídia senão uma filosofia que leva a mídia a sério? Assim como com a filosofia em geral, a filosofia da mídia diz respeito a trabalho conceitual. Ela explicitamente faz perguntas metafísicas que estudos de mídia com demasiada frequência tomam como já dadas. O que é um meio (medium) e como eles mediam? A mediação é uma precondição para a constituição de algo como um medium, ou é o contrário? Hartmann diz que não são as mídias que devem ser entendidas como objeto de análise, mas o conceito de medium e o medial. Seguindo uma busca filosófica clássica, a filosofia da mídia também preocupa-se em colocar questões epistemológicas. Como o mundo nos é apresentado em um ambiente altamente saturado por mídias? À luz do forte campo discursivo do materialismo da mídia no âmbito da língua alemã depois de Friedrich Kittler, as mídias são vistas como materialidades da comunicação que geram condições perceptivas. De acordo com Christiane Voss (2010), no entanto, questões epistemológicas sobre as mídias não deveriam ser resumidas a reconstruções históricas de viradas paradigmáticas da mídia, como aquelas descritas por Kittler, por exemplo, em Gramophone, Film and Typewriter.
Teoria da mídia versus filosofia da mídia
Talvez seja aqui que se detecte alguma diferença entre teoria da mídia e filosofia da mídia. Porque enquanto a primeira está enraizada nos estudos de mídia e nas preocupações sobre os supostos efeitos dos meios, frequentemente em relação a mídias concretas como cinema, televisão e computador, a filosofia da mídia não se propõe a oferecer uma teoria da mídia no mesmo sentido tanto quanto ela busca oferecer uma plataforma para o pensamento conceitual sobre conceitos e pressupostos fundamentais por trás dos aparatos técnicos, de uma maneira mais geral. Outra diferença parece residir nos próprios meios. Enquanto pode-se dizer que cada medium incorpora uma filosofia, um medium não carrega uma teoria do medium de si mesmo. Teoria portanto parece ser sobre algo, uma proposição de gêneros, enquanto filosofia pode ser parte daquilo sobre o qual tenta dizer algo. Tal como o que um medium é, suas propriedades, modos de relevar o mundo ou transmitir algo já contêm outro medium, se formos seguir McLuhan. Esse também parece ser o argumento de Lorenz Engell, quando ele diz que os meios não precisam esperar pela filosofia para serem conceitualizados, uma vez que eles, por si mesmos, já operam esse trabalho conceitual (2010).
Debate anno 2010
Isso nos leva ao mais novo acréscimo ao discurso em idioma alemão sobre filosofia da mídia. Junto com o historiador da mídia Bernhard Siegert, Lorenz Engell é o diretor do Instituto Internacional de Pesquisa em Tecnologias Culturais e Filosofia da Mídia (IKKM) em Weimar – uma das poucas institucionalizações bem sucedidas da filosofia da mídia. A mais recente edição temática de seu Zeitschrift für Medien – und Kulturforschung (Revista dos Meios- e Pesquisa Cultural) renova a ênfase nesses debates.
Dez anos depois, como essa edição temática retrata a filosofia da mídia hoje? Como a filosofia da mídia é conceitualizada e quão longe têm ido os debates desde as tentativas da primeira metade da década de 2000 em estabelecer a filosofia da mídia como um campo acadêmico autônomo?
Muito curiosamente, o editorial começa dizendo: “A visão proeminente e polemicamente expressa de que a filosofia da mídia é uma mera mania passageira é provavelmente verídica”. Isso significa que os críticos venceram? Talvez. O próprio Hartmann já estava mesmo relutante desde o ataque para dar apoio ao estabelecimento da filosofia da mídia como disciplina acadêmica em seus próprios termos, sugerindo, ao invés disso, a utilidade de um enquadramento dela como plataforma de pesquisa interdisciplinar, descrita mais detalhadamente em algumas dessas últimas publicações reunidas em Mediology. E aí, mais uma vez, Hartmann começa sua colaboração à edição especial do periódico declarando que não há maneira pela qual a filosofia possa continuar ignorando as mídias. Christiane Voss, que é atualmente professora visitante na Bauhaus-Universität Weimar, é a única nos sete artigos que aborda mais explicitamente a questão de empenho disciplinar versus discurso. Ainda há tentativas de constituir a filosofia da mídia como disciplina acadêmica pelo que sabemos, com a recente realização de um colóquio de pesquisa sobre o tema em Basel, junho passado. Voss argumenta que a filosofia da mídia é necessária em seus próprios termos, uma vez que busca lidar com todo um conjunto de problemáticas diferentes se comparadas à filosofia tradicional. Ao contrário de simplesmente imitar abordagens histórico-filosóficas em que alguém procura imprimir-se à existência pelo exercício hermenêutico de comentar textos canônicos existentes, a filosofia da mídia, segundo Voss, é voltada à transgressão das oposições categóricas de humano e medium. Pelo relato de Voss, a filosofia da mídia deveria ser vista como um esforço em direção às dimensões perceptivas e epistemológicas da relação entre os meios e o sujeito. O que parece estar em jogo, então, é a relacionalidade da mídia e seus diferentes resultados na experiência.
Medium
Então vamos entender isso: o que é um medium? Continuando só mais um pouco com o artigo de Voss, podemos compreender o medium em termos de afeto. Voss sustenta que o medium é constituído enquanto afeto. Em uma maneira filosófica clássica de aspirar a condições necessárias e universais, afeto é a propriedade que todo medium compartilha. Mídias são algo ou alguém em movimento e é essa qualidade que Voss vê como a precondição para o caráter autônomo e instrumental da mídia.
Dieter Mersch, que mencionei aqui antes, também situa as condições necessárias no âmbito do relacional, ou da característica de estar entre (in-betweenness) que é própria às mídias. Medium, significando meio, é tomado com a condição de possibilidade para todas as práticas culturais, daí porque Mersch ressalta: “Os humanos não podem senão mediar”. Além disso, um medium não pode ser pensado de forma independente de sua medialização (ou mediação) e vice-versa. Em um exercício etimológico pelo qual os filósofos continentais nutrem um particular apreço, Mersch reivindica a conceitualização do medium em termos tanto de meta (um entre, um intermédio) e dia (poiésis ou trazer para frente).
Sybille Krämer, professora de filosofia na Freie Universität em Berlim, contribui com um ensaio contendo um quadro filosófico para a compreensão da mediação baseada na figura do mensageiro. De acordo com Krämer, o medium apresenta algo mais do que o ato de representar. Ênfase é dada na tradução e transmissão, ao invés da criação e do poder constitutivo como a função primordial da mídia. De maneira similar, etimologicamente Krämer chama à constituição do medium como mensageiro, como a figura de intermédio significada pelo sentido de Mitte.
E agora?
A questão que precisamos colocar – independente de nós, como pesquisadores da mídia, identificarmos ou não os limites disciplinares da filosofia da mídia, ou se queremos ou não nos situar neles – é para onde vamos a partir daqui. Como diminuir um pouco o nível de abstração para tornar a abordagem da filosofia da mídia mais factível a mais estudos de mídia convencionais?
Um passo promissor aqui ressoa com o argumento de Engell na seção especial discutida nesta postagem. De acordo com Engell, a filosofia da mídia pode também ser compreendida como a filosofia que um certo medium já contém pela sua própria materialidade e relacionalidade com os meios prévios. Engell afirma, portanto, que a filosofia da mídia fílmica pode ser contrastada com a filosofia de um filósofo sobre o mesmíssimo filme. Tal abordagem também parece dialogar com os programas de pesquisa em tecnologias culturais e o tipo de materialismo da mídia advogado por muitos desses contemporâneos em idioma alemão. O ensaio de Engell observa a filosofia da mídia do filme através de uma análise de Annie Hall, de Woody Allen, compreendendo o trabalho conceitual feito pela comédia como contribuição à reflexão do medium filme.
Ao invés de apenas descartar a filosofia da mídia como uma moda ou como um trending topic que durou uma década, penso que esse esforço deveria ser levado bastante a sério – especialmente nos estudos de mídia. Quando Filk et al (2004) perguntaram quem precisaria mais urgentemente da filosofia da mídia, se a filosofia ou os estudos de mídia, eles colocaram um questionamento importante. Os estudos de mídia precisam de pensamento filosófico. Enquanto a filosofia da tecnologia tem ganhado bastante tração nos estudos de mídia, ainda parece haver espaço para uma abordagem filosófica que não necessariamente comece pelo tecnológico em si. No entanto, à luz de dez anos de debate circulando pelas questões se a filosofia da mídia deveria ou não ser vista como uma necessária subdisciplina da filosofia, as perspectivas de avançar para um maior esclarecimento disciplinar entre subdomínios da teoria da mídia e a filosofia da tecnologia podem parecer obcuras ou inúteis. Por outro lado, pode-se apenas esperar que os dias do debate disciplinar tenham-se exaurido e que possamos seguir para fundamentações analíticas mais substanciais.
Deixe-me concluir reiterando algumas das questões centrais que serão discutidas em uma conferência sobre filosofia da mídia que vai acontecer em Princeton, em colaboração com o IKKM, e que acredito que resumirá de forma bastante satisfatória que tipo de perguntas precisam ser feitas – e analiticamente examinadas com cuidado observando a filosofia da mídia que está incorporada nesses fenômenos tão contemporâneos quanto os sites de redes sociais e outras mídias possíveis por meio do software. Como epistemologias disciplinares moldam ou impedem nosso entendimento da mídia? Até que ponto as mídias escrevem e concebem sua própria história e evolução? E o que constitui a materialidade de um medium: seu aparato técnico, as condições epistêmicas de sua gradual emergência e evolução?
Post originalmente publicado no blog de Taina Bucher.
Imagem: “Babel” de Cildo Meireles (2010), em exposição na Tate Modern