Aqui vai a entrevista com Jan Claas van Treeck, pesquisador do departamento de estudos de mídia da Universidade Humboldt de Berlim. Ele me guiou pelos acervos do Media Archaeological Fundus e do Signal Laboratory, me mostrou o chip que tem implantado na mão e trouxe outros aparatos para demonstrar como o som é fundamental na pesquisa que estão desenvolvendo por lá.
O Fundus fica em um prédio onde Hegel morou e, saindo por sua porta, você atravessa a rua e entra no Museu de Pérgamo, na famosa Ilha dos Museus berlinense. Mas esse lugar na universidade está longe de ser um espaço museológico, apesar de reunir antigas mídias elétricas e eletrônicas em quantidade e variedade notáveis. Por aí começou o papo com van Treeck, que está trabalhando na sua Habilitation, obra de fôlego que doutores têm que desenvolver para se tornarem, de fato, professores universitários na Alemanha.
Vocês têm um lugar muito interessante aqui na Humboldt, o Media Archaeological Fundus, que é usado para dar aulas. Por que não devemos considerá-lo um museu?
O Fundus é mais como um repositório. Pelo lado de fora, pode parecer um museu porque tem um monte de coisas velhas, mídias antigas nele. Mas ele está lá para estocar materiais que usamos diariamente em nossas aulas, por exemplo, ou em nossas pesquisas. Então nós tiramos as coisas de lá, e nós as usamos, e nós as colocamos lá de volta. Assim, o lugar, por ele mesmo, não pode se tornar um museu, nem estamos interessados no valor museológico dessas coisas. O que nos interessa mesmo é como elas funcionam, como podem nos ensinar sobre o modo como pensamos e agimos em relação aos meios.
O que vocês esperam dos estudantes quando eles vão ao acervo de arqueologia da mídia?
Na primeira vez? Na primeira vez, penso que a reação mais comum seria – claro que depende do estudante, mas – talvez de simples surpresa pelo fato de que esse lugar existe. Mas talvez também curiosidade. O que é realmente interessante é quando os expomos aos artefatos que temos lá, o momento em que eles se dão conta de que as coisas não estão ali só para serem vistas, mas para serem tocadas e para entendermos como de fato funcionam.
Qual a importância de profissionais de comunicação entenderem como esses aparelhos funcionam? Por que não deixar isso para os profissionais de tecnologia?
Eu poderia responder isso de duas maneiras. Uma delas seria com um exemplo técnico: o nosso telefone celular. De certa maneira, usamos os celulares hoje como usamos outros telefones antes, só que de uma maneira móvel. Fazemos chamadas telefônicas com ele, certo? Temos a impressão de que é um telefone. Mas, por outro lado, ele também é um computador. Nós o usamos para acessar o Facebook ou o Twitter, ou e-mail, ou seja lá o que for. Então essa coisa é algo completamente diferente. Por fora, tem a aparência de ser um telefone, mas em essência é um computador pequenininho, que faz um monte de coisas, inclusive ligações telefônicas. Se a gente olhar para essas coisas num nível mais profundo, quem sabe até abrindo-as, talvez a gente chegue a se dar conta de que isso não é exatamente um telefone.

Eu levo os estudantes ao acervo e mostro a eles o antigo telefone analógico, com aquele discador, e que era conectado a fios na parede. Mostro também o manipulador para código Morse e o smartphone, e pergunto quais desses aparelhos se encaixam melhor juntos. Costumeiramente, só porque são mais úteis pra mim pelo lado de fora, é claro que eles vão agrupar o velho telefone e o celular. E então eu simplesmente tenho que dizer a eles que aquilo que o smartphone faz não é o mesmo que o telefone faz.
O telefone transmite sons analógicos, enquanto o smartphone processa esses sons analógicos em sons digitais, em intervalos discretos, literalmente em zeros e uns. É por isso que o smartphone tem mais a ver com o manipulador para código Morse. Mas isso só acontece quando você começa a pensar sobre o que é de fato um smartphone e como ele funciona. Aí se dá conta de que é um computador, e de quais são os modos básicos de funcionamento de um computador.
“O smartphone processa sons analógicos em sons digitais. Tem mais a ver com o manipulador para código Morse.”

O outro exemplo que gostaria de dar é de algo que chamamos de técnicas culturais. Isso é algo bastante curioso, porque é algo que todo mundo sabe. Se eu lhe entregar uma caneta para escrever, você vai segurá-la entre os dedos do jeito como você aprendeu a fazer. E ao fazer isso, você vai desempenhar literalmente o que a mídia fez a você. Portanto, percebemos que o próprio meio, o meio da escrita, transformou você antes mesmo de que começasse a escrever. Ele transformou seu corpo, porque você aprendeu esse gesto de escrever.
E podemos nos perguntar como os meios de escrita preconfiguram outras coisas que não estão imediatamente ligadas à escrita. Por exemplo, o caso curioso que neurofisiologistas descobriram, que quando olhamos para uma imagem – uma foto, por exemplo – frequentemente nos apegamos a começar pela ponta de cima à esquerda e examiná-la como se fosse um texto, até o canto inferior direito. É claro que aprendemos isso escrevendo e lendo.
Quando só olhamos para um texto, não temos ideia disso. Você realmente precisa pensar em como esse texto funciona no nível da materialidade da mídia, em como interagimos com ela e como ela interage conosco, em um profundo nível cultural e fisiológico. E esta seria a diferença entre apenas enxergar a materialidade superficial da mídia ou observar a materialidade da mídia de fato. E é isso que fazemos no Fundus.
Vocês também têm usado novos aparelhos…
Sim! Não é como se fôssemos museólogos ou estivéssemos mergulhados em nostalgia porque temos esse acervo de arqueologia da mídia em que armazenamos coisas velhas. Também usamos coisas mais novas. Eu implantei um chip na minha mão. Isso é considerado drástico, embora eu não entenda por que isso deva ser considerado mais drástico.

[Nota do Blog: ele havia feito o procedimento cerca de um mês antes de nossa conversa e disse ter sido bem doloroso, apesar de aparentemente não ser tão distinto de fazer tatuagem, piercing ou intervenções semelhantes. Neste link uma outra pessoa mostra como o chip é injetado no corpo.]
Podemos relacionar essa tecnologia com as práticas de pesquisa de vocês?
Claro. Este é um chip NFC , de Comunicação por Campo de Proximidade (Near Field Communication), que a maioria das pessoas conhece naqueles cartões para entrar em edifícios, por exemplo. O que você faz é pegar esse cartão e colocar na frente de um escâner e a porta abre. Em termos técnicos, o escâner emite energia, manda para dentro do cartão, e ela volta com a informação que está lá dentro. Assim, o escâner pode ler o cartão e ver qual é o código, se é o código correto, e abrir a porta para você. Isso também tem a ver com o manipulador para código Morse. Porque a maneira como a energia é transmitida é pulsada, e a maneira como a informação é codificada no keycard ou no meu chip é digital. Zeros e uns. Eu poderia usar o manipulador para código Morse para explicar em detalhes a interação entre meu chip e o aparato de controle de acesso que seja.
Você me dizia que não é esse tipo de implante que nos tornaria ciborgues, porque considera que as maneiras mais básicas que desenvolvemos para interagir com o ambiente já são dessa ordem.
É isso. Se prestarmos atenção ao termo ciborgue, que foi inventado nos anos 60 por duas pessoas chamadas Clynes e Kline, é interessante notar que é uma palavra composta. Consiste de “cib”, relativo a cibernética, a ciência do controle; e de “orgue”. A questão até hoje é se “orgue” trata-se de organismo ou de organização. Eu prefiro organização. Um ciborgue é, para mim, nada mais do que algo organizado em torno do controle. E isso é, em essência, o que quase todo ser biológico já é.

Os humanos são, é claro, mais interessantes do que, vamos dizer, uma ameba. Porque os humanos conscientemente interagem com aquele controle, em comparação com uma ameba, que apenas reage de alguma forma. Então eu diria que o humano sempre foi um ciborgue. Porque os humanos têm um grande problema, em comparação com uma ameba. Ela é um organismo adequado ao seu ambiente, enquanto nós, não. Olhe pra nós! Estamos aqui sentados na fria e chuvosa Berlim – e Berlim está fria, ela é assim. E qual é nossa solução para isso? Usamos roupas.
E construímos edifícios.
Construímos casas, exato. Aquecemos essas casas. Isso é algo que a ameba não faz, e que o tigre não faz na selva. Aparentemente, nós humanos somos seres que herdamos a falta ou a deficiência. E compensamos essa falta ou deficiência usando técnicas (no sentido de técnicas físicas) ou usando tecnologia. E tecnologia é algo bem antigo. A primeira clava que o humano tomou nas mãos já é uma peça de tecnologia. Usamos porque não temos garras como o tigre. Cozinhamos nossa comida porque não temos dentes que sejam grandes e fortes o suficiente para mastigar uma comida não cozida. A ideia de usar smartphone ou fazer um implante de chip talvez seja apenas um passo seguinte nesse desenvolvimento.
Você acaba de me mostrar este… como chama?
Vamos chamar de escâner eletromagnético.
E com ele podemos ouvir as ondas e os campos eletromagnéticos em volta das coisas que construímos, como os computadores, celulares e até o frigobar aqui da sala. O som é ótimo! E além disso é um outro nível de informação que temos sobre esses aparelhos.
Os aparelhos se disfarçam para nós. Se compararmos o telefone analógico e o smartphone, veremos que o analógico de fato transmite os sinais. Ele tem cabos. Tem que plugar o cabo na parede, e é assim que o som é transmitido. Mas como o celular transmite o som? Não existe cabo! Então tem que ser pelo ar. E ele faz isso através de sinais. Só que a gente não consegue ver esses sinais. É como se nós, como humanos, fôssemos ilíquidos. Não temos sentido [N.B.: não somos sensíveis] para isso. Mas é interessante porque, com tecnologia, podemos construir para nós um sentido para lidar com isso. É disso que se trata esse aparelho.
Ele é bem simples. Você coloca os fones de ouvido, segura em direção a qualquer outro aparelho, como o seu celular, e consegue ouvir como os sinais pulsados mudam quando você abre um certo aplicativo, por exemplo. Assim, você tem um sentido mais imediato de como essas coisas de fato funcionam, de como elas se conectam a outros aparelhos. É algo que em geral não podemos escutar ou simplesmente não conseguimos ver. Às vezes, conseguimos ouvir! É o famoso som do celular que a maioria de nós conhece, quando ele emite algo que às vezes interage com a TV ou outros eletrônicos. É um dos momentos em que conseguimos ouvir isso com nossos ouvidos naturais, por assim dizer. Mas o aparelho não vai permitir que escutemos isso o tempo todo, se quisermos.
Muitos poderiam fazer conexões com a escrita, por causa dos zeros e dos uns, mas vocês têm um ouvido para essa tecnologia. Por quê?
É a ideia de sonicidade, ou do sônico, que é como Wolfgang Ernst chama. O uso dos zeros e dos uns em tecnologia é o básico da digitalidade e isso refere-se, de fato, a uma oscilação. Uma oscilação entre dois pontos. O menos ou o mais extremo desses pontos são vistos por computadores como zeros ou uns. No fundo, são ondas. E essas ondas, claro, são estruturalmente a mesma coisa que ondas sonoras, que podemos ouvir. A ideia do sônico, a ideia dessas ondas sendo a base de praticamente tudo é realmente crucial.
O interessante é que, enquanto humanos, só conseguimos escutar um determinado espectro disso. Mas só porque escutamos apenas um certo espectro não significa que o resto não funcione exatamente como essa parte funciona. Então o que o meu aparelho aqui faz é “transponder” isso para um âmbito de frequências que possamos escutar. Talvez o ouvido seja um sentido privilegiado para sentirmos a tecnologia. Talvez porque seja mais imeditato, talvez porque o som dá um insight mais direto do que essas coisas fazem, em comparação com o sentido da visão, que usualmente fica na superfície, até que você abra o aparelho.
“Talvez o ouvido seja um sentido privilegiado para sentirmos a tecnologia.”

Há uma interessante relação entre o som e os relógios. Você me disse que eles guardam o mesmo princípio do computador.
Sim. Isso porque a maneira como os relógios funcionam tem a ver com oscilação. O mais básico dos relógios que usaríamos hoje em dia seria um relógio de quartzo. A pergunta óbvia é: como um relógio de quartzo funciona? Ele usa um cristal de quartzo. E o fato interessante sobre o cristal de quartzo é que ele vibra. Ele começa a oscilar no momento em que eu atiro elétrons nele. E é basicamente o que todo relógio faz. Todo relógio de quartzo possui uma pequenina bateria que alimenta de eletricidade o cristal de quartzo, que por sua vez começa a oscilar em uma determinada frequência. E essa frequência é usada para tomar o tempo. Vamos dizer que o cristal de quartzo oscila um certo número de vezes por segundo, e assim você pode contar dois segundos. É assim que o relógio funciona.

Se você fizer um paralelo entre essa oscilação e a oscilação entre os zeros e uns no computador, vai ter um computador plenamente desenvolvido, porque para poder distinguir os sinais entre zeros e uns, precisaremos de… Eu vou precisar desenhar! Espero que meu pequeno desenho faça sentido para os ouvintes dessa conversa. Então, o que acontece mesmo no computador não é zeros e uns. Vai ter sempre uma linha de base, uma eletricidade correndo por ele. Se for muito baixa, é calculada como zero. Se está dando pico, se é alta, é calculada como um.
O verdadeiro problema é: o que acontece quando você tem uma longa duração de, vamos dizer, uns. Como diferenciamos isso? Se temos um pico indiferenciado, isso é um um, ou três uns? Se você só tem diferença entre zero e um, essa é a única informação que vai conseguir. E isso não é bom pra nada. É preciso ser possível transmitir informação que seja zero-um-zero-um-um-um, por exemplo. Ou zero-zero-zero. Para fazer isso, é preciso uma maneira de diferenciar os três uns de apenas um um. E é claro que fazemos isso através do tempo.
Se tivermos uma certa duração (digamos, em segundos, que é mais facilmente compreensível) e ela for de um segundo, então saberemos que um pico estático de três segundos equivalerá a três uns. Mas só podemos ter essa ideia se tivermos algo que cria esse ritmo. Precisa ser algo como um relógio, algo que nos dê a ideia de um segundo, por exemplo. É por isso que todo computador tem um chip temporizador do processador. Ou gerador de ciclos de relógio. É por isso também que a tecnologia de tomada de tempo dos relógios está intimamente ligada à história e à própria essência do funcionamento do computador.

É por isso que os conceitos de tempo e de som são tão importantes para vocês aqui, no departamento de Estudos de Mídia da Humboldt?
Sim. Simplesmente porque não há som sem tempo. Para colocar em termos bem básicos, som é uma onda no tempo. Sem o tempo, não temos a impressão do som.
Mas se não temos tempo, não temos nada.
Se não temos tempo, não temos coisa alguma. Somos seres no tempo. Essa é a velha noção husserliana e heideggeriana. A ideia inicial é que as mídias só estão em seu estado de mídia quando estão em operação. Em operação no tempo, claro. Elas estão ocorrendo por meio de processos. Talvez esses processos sejam tão curtos que não conseguimos ter noção deles, só percebendo o resultado. Talvez porque o computador é tão rápido ao calcular algo que, para nós, [estala os dedos] é instantâneo. Mas se prestarmos atenção em um nível mais profundo…
…se os escutarmos?
…se formos capazes de ouvir o computador, transpondo-o por meio desses aparelhos, talvez atinjamos esse sentido inato do tempo que está acontecendo lá, e que não podemos ver com nossos próprios olhos. Talvez possamos ouvi-lo.
:: Este doutorado sanduíche está sendo financiado pela Capes – Ministério da Educação do Brasil, por meio do Programa Professor Visitante do Exterior (PVE), do Ciência Sem Fronteiras ::
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