Belfast “in situ”

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Exposição no Ulster Museum

Os poucos dias em Derry foram tão intensos, graças à rica programação da Associação Irlandesa de Som, Ciência e Tecnologia (ISSTA), que vou pular relatos do evento e vir diretamente escrever sobre Belfast. Embora tenha ido à cidade encontrar pesquisadores do Sonic Arts Research Centre, também vou falar de som só mais adiante. Tendo estado nas duas maiores cidades da Irlanda do Norte, que integra o Reino Unido, não posso deixar de adiantar alguns motivos pelos quais, aqui, identidade e território são um tema gritante. Se, na Escócia, a língua é um marcador de divisões entre grandes porções de terra (Highlands e Lowlands), nestas cidades os limites chegam à escala de bairros, quadras, ruas e até calçadas.

Esse nível de segregação ganhou contornos particulares a partir do fim dos anos 60, quando comunidades católicas – mais identificadas com a ideia de uma só Irlanda independente, ligadas a um background de classe trabalhadora com menor acesso a bons empregos e melhores salários, e sentindo-se destituídas de plena representatividade política – começaram um grande movimento por direitos civis. Houve repressão, sendo o Domingo Sangrento o mais conhecido deles: catorze civis desarmados em uma marcha reivindicatória foram mortalmente atingidos por tiros disparados por soldados britânicos no ano de 1972, em Derry. O crescente conflito, com baixas de ambos os lados, é conhecido como The Troubles.

Apesar do cessar-fogo estabelecido nos anos 90, a segregação espacial atingia cerca de 98% dos projetos de habitação de interesse social em Belfast, em dados divulgados em 2004. Há várias marcas visuais dessa situação, como as bandeiras hasteadas ostensivamente por muitos que se consideram acima de tudo britânicos, e que são predominantemente protestantes. Nisso, a comunidade católica é mais discreta, o que não deixa de ser curioso se lembrarmos que uma das grandes características da Reforma foi a negação do culto a imagens. Quando a questão é o Estado, a idolatria parece imperar entre alguns lealistas mais extremados.

celtic_fc_logoAo invés de flâmulas nas casas e nas ruas, quem abraça mais a identidade irlandesa costuma levar outro tipo de bandeira no próprio corpo. É muito comum ver adultos, jovens e crianças vestindo a camisa do Celtic Football Club, de Glasgow. A cor verde simboliza a tradição gaélica na bandeira da independente República da Irlanda. Também referência celta é o trevinho (shamrock, do gaélico seamróg) no escudo do time escocês. As três folhinhas estão também associadas a São Patrício, santo católico que dizem ter usado a trinca para explicar a Santíssima Trindade durante suas pregações pela ilha, ainda no século V. Esse é um grande exemplo do complexo imbricamento simbólico entre catolicismo, tradição gaélica e ideal irlandês.

Há outros dois aspectos muito fortes da segregação a citar. O primeiro é o uso de muros e até mesmo portões altamente fortificados, que fecham permanente ou temporariamente determinadas áreas da cidade, para evitar o contato seguido de confronto entre membros mais fervorosos das duas comunidades (como jogar pedras uns nos outros). Isso faz com que seja possível cruzar certos bairros de dia, mas não à noite, quando é preciso dar toda uma volta, caso se queira ir do centro até alguma vizinhança para além desses espaços mais belicosos. E mesmo com os muros altos, ainda tem quem erga um pau da bandeira, pra que vejam do outro lado. Atitude considerada infantil por muita gente, independente da comunidade de origem.

Muros são usados para demarcar território e identidade, seja física ou simbolicamente

O segundo aspecto é o uso dos muros para constituir/disputar narrativas históricas e identidades de lugar por meio das pinturas. Os murais de Belfast (assim como os de Derry) costumam enaltecer pessoas assassinadas e figuras que se destacaram nas lutas, desde grupos que fizeram greve de fome e atuaram pelas vias políticas mais tradicionais até os que se envolveram em guerrilha urbana. Ambos os lados do conflito tiveram seus grupos paramilitares. Entre os maiores estão os antagônicos IRA (Exército Republicano Irlandês) e UDA (Associação de Defesa do Ulster). Mascarados portando fuzis e outras armas de grosso calibre são bem comuns entre as figuras representadas, permeando a paisagem da cidade com imagens de guerra.

Mural Irlandês
Mural do republicanismo irlandês, nas imediações da Falls Road, em Belfast
Mural em comunidade protestante
Fachada lateral com mural loialista de Ulster, também na capital da Irlanda do Norte

Muros, portanto, são usados para demarcar território e identidade, seja física ou simbolicamente. Há pelo menos dois projetos de mapeamento dos murais em plataformas online: o Virtual Belfast Mural Tour e o Belfast Murals. Este último tem a vantagem de trazer pinos indicativos em três cores, incluindo um terceira categoria de murais. Parte das pinturas caracterizadas como “sócio-culturais” parece transcender a dualidade do conflito. Exalta-se a indústria de Belfast (onde o Titanic foi construído), ou celebra-se figuras como jogadores de futebol e artistas nascidos na cidade, como é o caso do autor de “As Crônicas de Nárnia”, C.S. Lewis.

Virtual Belfast Mural Tour

Belfast Murals

Gostei particularmente deste mural, à beira do Rio Lagan:

mural-quantum

Bom, agora vamos ao som!

29428483600_9eef75f1ed_oAs ruas em que moram principalmente católicos têm seus nomes grafados tanto em inglês quanto em irlandês, o que evoca, para além da caligrafia gaélica, uma sonoridade peculiar no âmbito da fala. Mas não ouvi ninguém falando irlandês. Convivi alguns dias com uma garota que estava chegando de Dublin, onde ela diz que se fala mais o inglês do que o gaélico do Eire. Então quando penso em um som marcante da comunidade católica-irlandesa-nacionalista em Belfast, não dá para dizer que essa língua falada chegue a ser predominante como elemento sonoro.

Já sons que marcam uma identidade protestante-britânica-lealista são bem mais audíveis pela cidade. Além do som corrente do inglês, logo no primeiro dia esbarrei com uma parada de rua, com uma banda marcial cruzando uma vizinhança. Depois de ver tantos murais, não é estranho que a percussão lembre o som de rajadas de balas.

Eis o registro:

A coisa foi tão rápida e inesperada, que não deu pra puxar o microfone. Foi em mono mesmo, e sem proteção de vento. Também não deu pra fazer o registro visual da banda. Fotos, só do carro da polícia, que já estava ali antes e lá permaneceu depois da passagem dos músicos. Incrementado com telas de proteção, funciona como uma espécie de baliza. A viatura inibe confusões, como disse a pessoa que estava nos guiando. Achou melhor ir perguntar ao policial se podíamos tirar foto do automóvel. Como foi liberado, uma meninada de oito a dez anos que ali passava se sentiu autorizada a rondar animadamente o carro. Para organizar, o policial veio e disse para os meninos se aglomerarem, que ele mesmo tirava foto de todos juntos.

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Detalhe do guia para os organizadores de desfiles

Depois de alguns dias, fui ver se havia na internet algum vídeo dessa banda que presenciamos passar. O que encontrei foram dezenas e dezenas de registros audiovisuais de bandas que desfilaram naquele mesmo dia, mas nenhuma “West Belfast”, como estava escrito no bumbo deles. Ou seja: não só tem muita banda, como tem bastante desfile.

A maioria é ligada às comunidades protestantes. A proporção é a seguinte:  2.851 lealistas/unionistas e 219 nacionalistas/republicanas no último ano, segundo relatório da comissão não-governamental que regula todos os desfiles. Todos mesmos, até a parada gay daqui. Mas os maiores problemas são desfiles associados ao estatuto político da Irlanda do Norte, ou seja, seu atrelamento ou desatrelamento do Reino Unido. Embora a comissão tenha sido constituída no cessar-fogo dos anos 90, as confusões são tão antigas quanto os desfiles de bandas marciais, datando do século XVIII. A segregação não é de hoje.

Cerca de cinco mil reclamações foram registradas no último ano, e duas paradas culminaram em “desordem pública”. Em outras três (entre as quais, uma parada anti-imigração), “as tensões foram grandes”. Apesar da presidente da comissão, Anne Henderson, reconhecer que várias desavenças de longa data permanecem por resolver, também afirma que “a tendência crescente dos organizadores em responder positivamente às comunidades locais no planejamento das paradas tem contribuído para um ambiente de desfiles cada vez mais estável, e mesmo que disputas entrincheiradas apresentem oportunidades limitadas para o progresso no presente, não são de impossível resolução”.

Mediação da comissão de paradas envolve o estabelecimento de percursos

Boa parte do trabalho desse órgão independente “quasi-judicial” diz respeito à regulação de atividades sociais no que concerne ao espaço e ao som. “O organizador deve considerar o percurso da parada”, diz o manual dirigido a organizadores. A preocupação recai sobre zonas comerciais, lugares de devoção, memoriais e cemitérios, mas também “áreas de diferente tradição” ou “áreas de interface”, onde é preciso tocar mais baixo (“there should be no excessively loud drumming“), ou até deixar de tocar, se houver cultos acontecendo (“when church services are taking place, no music should be played“).

A Parada do 12 de Julho, ou Orangemen's Day, se repete desde o século 18 (Foto: Sam Woodcock, CC, 2012)
A Parada do 12 de Julho, ou Orangemen’s Day, se repete desde o século 18 (Foto: Sam Woodcock, CC, 2012)

As diretrizes que a comissão impõe reforçam um entendimento entre as partes: organizadores que entram em contato com as comunidades por onde passarão, mostrando boa vontade, têm mais chance de ter permissão de desfilar. Da mesma forma, representantes de comunidades que não respondem positivamente a essas tentativas de envolvimento dos organizadores têm menos chance de conseguir defender restrições em relação a uma parada.

Mas se o número de desfiles é muito grande em determinada área, a comissão também costuma rejeitar algumas solicitações. Nem tanto, nem tão pouco: se durante vários anos houve restrições de percurso em certas zonas, o órgão costuma reavaliar e deixar passar desfiles de novo. Assim, parece evitar que se consolidem “áreas de desfile” e “áreas sem desfile”. Esse jogo de territorializar-desterritorializar-reterritorializar as paradas, eventos que expressam acusticamente as divisões sociais no espaço público, apresenta-se como uma tentativa de arrefecer a segregação.

Outras bandas, outras relações, outras repercussões…

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Há um outra tradição de grupos musicais na Irlanda no Norte que contrasta com essas bandas, em termos estéticos e sociais. Brass bands são bandas de metais, instrumentos de sopro como trombone e trompete, que dependem da vibração dos lábios. Mas muitas bandas também usam sopro de madeira e percussão, como as de New Orleans. É grande a diversidade, já que comunidades de vários lugares no mundo acabaram por desenvolver seus próprios estilos. O britânico, por exemplo, é muito característico, conhecido e documentado.

As brass bands de Belfast, por sua vez, foram recentemente tema de um áudio-documentário que só pode ser ouvido na cidade, por meio do aplicativo de celular Belfast Soundwalking. Tive a oportunidade de baixar o programa e seguir a caminhada sonora temática no Jardim Botânico. O resultado foi a audição de várias entrevistas interessantes, de muitas nuances do sotaque irlandês e de uma seleção musical maravilhosa, enquanto passeava por um lugar lindo!

Casa da Palmeira vitoriana do Botanic Gardens
Casa da Palmeira vitoriana do Botanic Gardens

Os integrantes das bandas contam, por exemplo, que nos anos 1970 não era cool participar de brass bands. Pelo que entendi, as “bandas de flauta” é que eram a grande sensação. Ao mesmo tempo, um dos músicos entrevistados relata como a segregação pouco afeta a dinâmica das brass bands – e se diz orgulhoso por isso. Para mim, apesar de também estarem associadas a um contexto militar e evocarem certo triunfalismo, essas bandas têm um som muito mais lúdico e acolhedor, que faz carinho nos ouvidos. Já as bandas marciais como a que passou por nós no outro sábado soam para mim bem mais sérias e regimentais, chegando aos ouvidos com certa violência, em estampidos múltiplos e fortes.

Agora dá uma escutada nisso:

O app Belfast Soundwalks foi desenvolvido por pesquisadores da Queen’s University de Belfast, com coordenação de Pedro Rebelo, que já foi entrevistado aqui pelo blog.  A brincadeira é a seguinte: a gente escolhe uma das caminhadas disponíveis (vai ter post só sobre isso em breve, espero) e para iniciá-la é preciso andar até o lugar indicado. O aplicativo lê nossa posição no GPS e dispara os conteúdos em áudio a partir dali.

No caso do áudio-documentário produzido por Paul Wilson e David Bird sobre as brass bands, uma sequência indicada por números orienta o passeio. Isso não impede que cada um “edite” sua própria caminhada, alterando a narrativa e a experiência do espaço. Aí embaixo tem a tela do momento em que eu estava indo do ponto 4 para o ponto 5.

Eu “sou” essa setinha preta, apontando para baixo, repara:

Usando o app Belfast Soundwalkings
Usando o app Belfast Soundwalkings
Chuva: saída pela esquerda!
Chuva: saída pela esquerda!

E essa sou eu indo embora sem ouvir a parte 6, porque o tempo estava virando e estava sem casaco de chuva. Achei melhor me encaminhar pra casa, que era na contra-mão do último ponto. Mas o conteúdo do ponto 5 me acompanhou por boa parte do caminho. O que depende da posição exata é apenas o acionamento, o “play“. É preciso estar exatamente ali, naquela coordenada, para poder ouvir o que o aplicativo oferece. Nossa conexão à internet se encarrega do resto.

A experiência que tive será, sem dúvidas, memorável. Quando ouvir o som de brass bands daqui em diante, é bem provável que me lembre dessa tarde no Botanical Gardens em Belfast. Quando falamos de espaço, falamos de relações. E é isso que o aplicativo promove. Ele dá relevo a outras músicas locais e ao congraçamento que há por trás delas, nos deixando envolver por esta outra Belfast que soa, bem mais afetuosa. Se tanta gente consegue escutá-la, não sei dizer. Mas além dessa iniciativa audível, há muitas outras bandas tocando nos becos do centro e há as risadas nos pubs, onde foi fácil sentar e começar a conversar com desconhecidos, tomando uma Guiness com eles.

A segregação existe? Existe. Mas o local que me recebeu em sua casa disse acreditar que, quando as pessoas puderem comprar suas próprias casas, talvez escolham viver mais misturadas. Foi o que ele fez há dois anos. Durante uma semana vivi ali, dando bom dia aos vizinhos pegando sol com seus bebês e vendo as crianças deles pararem de bicicleta para ver o cachorro, cujo pêlo meu anfitrião escovava sentado no batente da porta de casa. Super de boa. <3

 

:: Este doutorado sanduíche está sendo financiado pela Capes – Ministério da Educação do Brasil, por meio do Programa Professor Visitante do Exterior do Ciência Sem Fronteiras ::

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