Pensado, escrito, soado

Pedro RebeloAlterações no ambiente sonoro do Complexo da Maré durante a ocupação das chamadas forças de pacificação, esclarecimentos sobre o conceito de escuta evocativa e comentários sobre o atual panorama dos sound studies.

Esses são apenas alguns pontos da conversa que tive por e-mail com Pedro Rebelo, professor visitante da UFRJ, que vem agitando vários projetos interessantes entre Belfast, Rio de Janeiro e Viseu, entre universidade, sala de concerto e espaço público, entre o pensado, o escrito e o soado.

 

O que o levou à arte sonora?

O meu percurso vem essencialmente da música, com uma forte influência da arquitectura. O meu doutoramento na Universidade de Edimburgo foi desenvolvido entre a faculdade de Arquitectura e a de Música, o que me permitiu pesquisar relações entre som e espaço de um ponto de vista interdisciplinar. A arte sonora surge como uma prática em que a escuta é contextualizada e situada, permitindo a criação de lugares que embora temporários (como é normalmente o caso de instalações sonoras) expõem várias formas de nos relacionarmos com o mundo sonoro. A minha prática vai desde a música de câmara, à improvisação livre e instalação, de forma que abrange tanto a música como a arte sonora. Embora a arte sonora tenha recentemente ganho identidade a partir de uma relação com as as artes plásticas, eu vejo as artes sonoras de uma forma abrangente. A música, por exemplo, é uma arte sonora!

E o que o levou à UFRJ?

Desde alguns anos, a relação com alguns professores da UFRJ tem-se vindo a intensificar. Isto num contexto de uma parceria institucional entre a Queen’s University Belfast (onde o Sonic Arts Research Centre está inserido) e a UFRJ. Em 2014, o professor Rodrigo Cicchelli Velloso da Escola de Música, juntamente com o professor Guto Nobrega da Escola de Belas Artes proporcionaram a oportunidade de um período de pesquisa e ensino como professor visitante.

Laboratório do Sonic Arts Research Centre (SARC)
Laboratório do Sonic Arts Research Centre (SARC)

Finalmente, o que o levou ao Complexo da Maré?

Uma outra ligação importante na UFRJ é o trabalho que o professor Samuel Araújo tem vindo a desenvolver no contexto do grupo Musicultura, um laboratório de pesquisa etnomusicológica na Maré. O trabalho do professor Araújo é uma referência internacional na área de pesquisa participativa e inspirador de um ponto de vista social e humano. Quando começamos a preparar o desenvolvimento de um projeto participativo de arte sonora no Rio, a Maré, especificamente o Museu da Maré e a sua ligação ao Musicultura, apresentou-se com situações de acolhimento ideais.

“As metodologias têm uma vertente etnográfica. Outro aspecto é a partilha de estratégias de arte sonora.”

Sounds of the City - Belfast
Sounds of the City – Belfast

O projeto desenvolvido junto aos habitantes do Complexo da Maré partiu de metodologias desenvolvidas  para o Sounds of the City – Belfast, encomendado pelo Metropolitan Art Centre, para a sua abertura em 2012. O que é o Metropolitan Art Centre e quais são tais metodologias?

O Metropolitan Arts Centre (MAC) é um centro de artes que surgiu em Belfast em 2012 com uma política forte do ponto de vista de abertura à população (incluindo grupos que tradicionalmente têm pouco ou nenhum acesso às artes) e também de engajamento comunitário através do serviço educativo. O projecto Sounds of the City – Belfast foi uma proposta do MAC para desenvolver algo que ligasse a experiência de engajamento comunitário de uma equipa que precede a criação do centro e a pesquisa desenvolvida no Sonic Arts Research Centre, onde sou professor.

As metodologias desenvolvidas para este projeto têm uma vertente etnográfica em que um grupo de participantes cria um vocabulário que nos permite falar da vida cotidiana através do som. Um outro aspecto metodológico é relacionado à partilha de estratégias de arte sonora (desde a gravação de campo até formas expositoras de trabalhar com o som). Os aspectos colaborativo e participativo do projeto são apontados como forma de garantir um nível de autoria pelos próprios habitantes e moradores, no intuito de contribuir para a celebração da cultura local.

“Um dos pontos importantes a frisar é a diluição do conceito de eles e nós.”

Kombi "Som da Maré"
Kombi “Som da Maré”

Partindo da questão da autoria: o que eles criam, por meio do projeto?

Um dos pontos importantes a frisar é a diluição do conceito de eles e nós. No Som da Maré participaram alunos da pós-graduação da UFRJ (de música, arquitectura, belas artes, design, comunicação etc…), tal como um grupo de bolsistas do Museu da Maré e suas famílias. Todos estes indivíduos têm experiências, motivações e conhecimentos distintos. A estrutura horizontal do projeto tem como principal ambição intensificar a colaboração num grupo de pessoas que normalmente não trabalhariam juntas.A criação, neste contexto não segue moldes tradicionais de produção cultural, nem de autoria, mas permite uma certa abertura em termos de geração de ideias e de conteúdos.

Um exemplo do projeto pode ajudar a ilustrar este tipo de relação. Um dos temas que surgiu coletivamente desde o início, do ponto de vista de articular uma experiência do dia a dia de lugar através do som, foi a chuva. A chuva como um experiência positiva associada a banhos de chuva no verão mas também a uma precariedade, quando a chuva entra em casa e se torna necessário proteger a família. Neste caso, a chuva como tema esteve presente desde o início e foi desta forma criação do grupo de participantes.

A forma de articular este tema no contexto da exposição e passeio sonoro tem a haver com a segunda parte da metodologia descrita acima em que estratégias de artes sonoras são exploradas com o objectivo de identificar a forma mais eficaz ou evocativa de comunicar um tema particular a um público que vai além dos participantes. Este exemplo mais conceptual é contrastado com casos em que gravações de campo feitas pelos participantes são diretamente utilizadas no passeio sonoro como momentos que retratam ligações pessoais entre som e cotidiano.

 

Como foi a receptividade dos participantes?

Segundo conversas informais, entrevistas e depoimentos, o projeto foi extremamente bem recebido. Os participantes identificaram o trabalho de memória e as componentes práticas (por exemplo, gravação de campo) como aspetos positivos do projeto; isto do ponto de vista de algo que pode ter desdobramentos além da duração do projeto.

O que você descobriu de especial sobre a Maré, a partir de sua dimensão sonora?

O som tornou-se um veículo para melhor conhecer o dia a dia dos participantes. Um dos aspetos que se tornou evidente foi a quantidade de memórias e reflexões que são comuns a vários tipos de vida e não necessariamente específicos a uma comunidade (por exemplo, banhos de chuva ou brincadeiras de rua).

Pessoalmente, houve para mim um momento importante que foi articulado dramaticamente por uma alteração na paisagem sonora. A militarização da Maré, nos finais de março de 2014, transformou (embora apenas momentaneamente) os níveis de projeção sonora pelas ruas. O hábito de utilizar sistemas sonoros em público a tocar diversos estilos de música na rua foi abandonado por alguns dias. Segundo alguns participantes que notaram esta mudança no ambiente sonoro, esta alteração de comportamento tem a haver com o não saber se tais atividades seriam aceites ou legais em uma Maré militarizada. Passados um ou dois meses presenciei cada vez mais música a voltar às ruas…

“A militarização da Maré transformou os níveis de projeção sonora pelas ruas.”

Som da Maré

Que desdobramentos você espera do projeto?

A continuação no desenvolvimento das metodologias utilizadas é importante para mim do ponto de vista de criar situações participativas eficazes nas artes sonoras. Vou publicar os aspetos mais teóricos do projeto para que esta vivência se torne num contributo a nível académico e se relacione com outros trabalhos na área. É importante que o projeto não se torne demasiadamente itinerante de forma a perder uma ética de engajamento local. Ele nasceu em Belfast, a cidade onde vivo e trabalho, veio para o Rio, uma cidade com que tenho imensas afinidades e onde vivi seis meses para trabalhar no projeto. Um coisa que gostava e espero poder fazer em breve é levar este tipo de projeto à minha cidade natal, Viseu em Portugal.

Invisible Places- Sounding Cities - Cartaz

A propósito, Viseu atraiu agora em julho a atenção dos pesquisadores na área dos sound studies, por ter realizado o Invisible Places – Sounding Cities. O que você sentiu nesse retorno à sua cidade natal, sendo ela a “sounding city” do evento?

Foi um prazer imenso ver e ouvir Viseu de uma forma diferente e voltar a casa neste contexto profissional. A oportunidade de fazer uma obra pública numa rua onde eu cresci foi um privilégio em termos de reviver memórias e do relacionamento com as pessoas. O evento foi extremamente bem sucedido e serviu de confirmação que se podem organizar eventos de pesquisa de qualidade fora dos centros institucionais.

Pedro Rebelo, Raquel Castro – mais alguém? Viseu parece ter um grupo interessante de pessoas pensando o entorno sonoro. A que se deve isso?

Tanto eu como a Raquel saímos de Viseu há bastante tempo e houve felizmente este ano uma oportunidade de trazermos os nossos interesses para nossa cidade natal. O que facilitou a concentração de energias à volta do som este ano foi uma parceria com o evento Jardins Efémeros. Os Jardins têm um carácter transformador a nível urbano e social. A programação, que vai da música às artes plásticas e arquitectura, consegue transformar a dinâmica da cidade, em especial do centro histórico. O Invisible Places – Sounding Cities aconteceu nesse contexto, o que proporcionou oportunidades únicas do ponto de vista de pensar o som no contexto urbano.

“Um aspeto claramente articulado nestes encontros é a maturidade da identidade dos sound studies, relativamente recente.”

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[galeria completa de Dan Pope]

É possível apontar algo de emergente no panorama dos sound studies, a partir das comunicações, obras, práticas de escuta e do próprio encontro entre participantes do evento? Você percebe algo diferente no campo neste ano de 2014?

Um aspeto que é claramente articulado nestes encontros é, antes de mais, a maturidade da identidade dos sound studies, que é relativamente recente. Além disso acho que se tem avançado imenso do ponto de vista de práticas artísticas centradas na escuta. Estou a falar de práticas que vão para além da composição musical em termos de método e abordam influências das artes plásticas e performance, mas também dos referenciais teóricos presentes na área do som. Acho a naturalidade como estas práticas estão a surgir, com formas naturais e orgânicas de relacionar várias influências, muito excitante.

Sua participação no Invisible Places – Sounding Cities se deu também pela intervenção urbana MESAS. O que acontecia ali, quando as pessoas passavam por baixo das mesas suspensas sobre a Rua Direita? Há algum feedback que gostaria de compartilhar?

O projeto MESAS em colaboração com o Ricardo Jacinto foi um desafio da Raquel Castro e Sandra Oliveira (diretora dos Jardins Efémeros) que me pediram para propor um projeto de arte sonora em espaço público; neste caso no centro histórico de Viseu. A relação entre objectos do cotidiano e o som é algo que me interessa, tal como formas diferentes de olhar para estes objetos do dia a dia. Assim sendo, o projeto pega em vários tipos de mesas provenientes da rua onde a obra é instalada e suspende os objetos de forma a que a circulação de pessoas é feita por baixo destes. Existe um trabalho de etnografia sonora a partir destes objectos. Cada mesa é doada ao projeto por um indivíduo ou grupo e essas histórias, tal como os ambientes sonoros das próprias mesas, compõem o universo acústico do trabalho. Objectos que ocupam normalmente um ambiente interior e muitas vezes privado (mesa de ourives, mesas de escola ou de jogo) tornam-se públicos, expostos no exterior e projetam materiais sonoros que lhe dizem respeito.

“Esta noção de escuta evocativa assume que a escuta é condicionada às relações sociais do dia-a-dia.”

MESAS: intervenção urbana de Pedro Rebelo & Ricardo Jacinto
MESAS: intervenção urbana de Pedro Rebelo & Ricardo Jacinto

A instalação me parece concebida a partir da ideia de escuta evocativa (evocative listening), que se aplicaria a obras artísticas (arte sonora) e sobre a qual você escreveu em parceria com Rui Chaves em 2012, para o periódico Organized Sound. Pode nos esclarecer mais sobre esse conceito?

A noção de escuta evocativa tenta reunir vários conceitos que têm como base o relacionamento social e a situação de lugar. Ela parte do princípio que o espaço de escuta é múltiplo e que as condições de escuta vão para além da relação sujeito-objecto. O evocativo aparece assim como uma forma de articular o cotidiano, através de por exemplo uma inversão de relações (privado-público, interior-exterior) ou de transformações do background em foreground. Esta noção também assume que a escuta é condicionada às relações sociais do dia-a-dia.

No projeto MESAS, por exemplo, o fato de se ouvirem vozes que pertencem a pessoas que habitam aquela rua cria uma relação de escuta específica, para estas pessoas mas também para a forma como elas se relacionam com outras através do fato da voz delas estar momentariamente projetada em espaço público.

Que outros artigos seus nos indica à leitura?

Como sempre, acho que o próximo vai ser o mais interessante!!! Estou neste momento a trabalhar num capítulo em colaboração com o Professor Rodrigo Cicchelli Velloso, da UFRJ, que vai abordar as questões exploradas no projeto Som da Maré. Relações escuta-local são abordadas num artigo recente no International Journal of Mobile Human Computer Interaction, intitulado “Belfast Soundwalks: Experiences in Sound and Place through Locative Media”.  Trabalhos noutras áreas incluem pesquisa no campo da notação musical (Rebelo, Pedro (2010) “Notating the Unpredictable” Contemporary Music Review 29, no. 1 (2010): 17 – 27) especificamente a sua relação com a composição e improvisação e no campo da performance em rede (Rebelo, Pedro (2009) “Dramaturgy in the Network,” Contemporary Music Review 28, no. 4 (2009): 387).

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