
Falo tanto de cidade que fiquei especialmente curiosa quando soube que o artista sonoro e músico improvisador Marcelo Armani estava rumando ao interior do Estado de São Paulo para uma residência artística, a fim de explorar o ambiente sonoro rural de São José do Barreiro. Compartilho com vocês o que ele gentilmente compartilhou comigo sobre sua participação no rural.scapes – laboratório em residência, programa com ênfase na pesquisa, articulação, reflexão e práticas transdisciplinares artísticas e produção crítica no ambiente do campo. O resultado será exposto no Paço das Artes, em São Paulo, em junho.
Considerem que minhas perguntas foram feitas quando Armani estava no curso do trabalho, e as respostas foram sendo respondidas aos poucos e concluídas quando ele voltou da experiência. Portanto podemos conferir alguns aspectos importantes de seu processo criativo no encontro com novas pessoas e novos lugares. Aí vamos!
Você já tinha ideias para o ambiente rural, ou a chamada te estimulou a criar algo?
Nasci no interior do Rio Grande do Sul e vivi uma parte de minha infância, por volta de um ano, no meio rural. Durante esse período frequentei uma escola rural também. Após isso, meus pais se mudaram para a região metropolitana de Porto Alegre. De alguma maneira, a paisagem sonora do ambiente rural me é familiar e vivenciar essa experiência é como acessar uma parte desse registro da infância. Porém os costumes, sotaques e alguns aspectos naturais são bem distintos de um lugar para o outro.
Aqui [na residência] encontrei outras conexões com os registros que possuo e esses fatores muitas vezes são amplificados através do processo de imersão que há em um programa de residência artística. Dessa maneira, projetos e ações se desenvolveram empiricamente. De uma forma mais natural e por processos experimentais. Por isso não me preocupei em ter um projeto já fechado e tal. Prefiro seguir por essa linha que envolve processos de site specific, arte in situ, intervenções, ocupações e ações performáticas.
Do que se trata sua participação?
O meu projeto se enquadra em técnicas e procedimentos que seguem a linha de pesquisa e de discussão presente na arte sonora, mas passando por linguagens e elementos das artes plásticas. Basicamente, o trabalho é realizar registros da paisagem sonora local com a utilização de diferentes equipamentos de captação, atuando na composição de texturas ou intenções eletroacústicas que posteriormente serão utilizadas como matéria prima para intervenções sonoras no ambiente externo. O resultado dessas ações será organizado e exposto no Paço das Artes, em São Paulo, durante o mês de junho, mas também pode ser acessado através do site do projeto.
“Projetos e ações se desenvolveram empiricamente.”

Quantas pessoas fazem parte da residência e qual o perfil delas? São artistas, pesquisadores?
Foram selecionados 12 artistas, dos quais quatro desses são brasileiros e os outros oito são de outros países da America Latina, África e Europa. Dentre esses artistas, muitos são pesquisadores e professores de universidades, atuando em linguagens que passam pela pintura, desenho, fotografia, escultura a mídias tecnológicas e processos autossustentáveis.
Que tipo de trocas interessantes poderia destacar?
Tudo fluiu de uma maneira bastante natural. Alguns aspectos arquitetônicos chamaram a minha atenção e, a partir desse ponto, algumas ações foram realizadas, gerando trabalhos locais cujo diálogo se estabelecia diretamente com essa estrutura, como é o caso de “à capela”.

A convivência com os demais artistas em residência era a melhor possível. Fazíamos parte de uma família e parecia que nos conhecíamos há mais tempo. E foi dessa atmosfera que passamos a articular e entrecruzar alguns projetos. Posso destacar uma performance que realizei na praça pública de São José do Barreiro com o artista e tecelão Alexandre Heberte, unindo a prática do tear com a arte sonora. Basicamente instalamos um microfone de contato no tear e os sons e ruídos do processo de tecelagem eram assim captados e enviados a equipamentos de efeito e sampler para manipulação do áudio original e reproduzido no ambiente por autofalantes dispostos na praça.
“Esse processo amplifica os sons da mente humana.”
Essa foi uma troca que me interessou muito, pois constantemente minhas pesquisas no campo sonoro e musical avançam mais e mais sobre essa experiência de reconfigurar uma máquina ou objeto sobre a ótica de “instrumentos musicais em suspensão”, explorando dentre esse manuseio uma série de elementos presentes no universo rítmico, atonal e cacofônico, mas também esse processo amplifica os sons da mente humana em seus processos fabris, em seu cotidiano, em suas passagens de lá pra cá articulando silenciosamente um concerto em uma orquestra de desconhecidos.
Que questões de fundo motivam o trabalho?
Primeiramente minha percepção é ativada pelos sons do entorno sonoro que há nesse local tão distante do meio urbano ao qual estamos acostumados. Esse local é um espaço no qual o tempo praticamente é lentamente soprado. Por isso muitas das primeiras captações apresentam o vento como um elemento que ativa determinados processos. Entretanto, alguns dos meus motivos com esse projeto é provocar nos ouvintes a percepção da presença sonora existente em objetos, em imagens. Um mapeamento muito sutil de sons e ruídos, muitos desses imperceptíveis a nossa atenção, e que acontecem ou que dependem de uma ação para que ocorram como é o caso de “Concerto para Cocho”.

Essa minha relação com o entorno sonoro, com elementos ditos “não musicais” já decorre de outros trabalhos como em “tranS(obre)por”, no qual o espaço urbano é encarado como uma orquestra. [ATUALIZAÇÃO: no dia seguinte à publicação do post, este trabalho de Armani apareceu entre os selecionados Rumos Itaú Cultural 2013-2014; o projeto envolve oficinas, seminários, encontros e similares; além de pesquisa e residência.] Esse é um caminho praticamente interminável e que me fascina imensamente. Processos vibratórios em objetos. Sons e ruídos imperceptíveis que requerem uma pausa longa ou um mergulho mais profundo de nossas percepções. O som como um agente de ligação entre o meio visual e plástico que estabeleça uma relação direta com esse, aprofundando e amplificando questionamentos sócio econômicos, culturais e antropológicos.
Como tem sido a experiência de gravação de campo no campo? Em que se desdobrarão as gravações?
Essa experiência foi bastante proveitosa e estimulante. Tive a oportunidade de estender algumas das técnicas que tenho pesquisado e pensado. Foi uma oportunidade de conhecer e trocar vivências com outras pessoas, cujos processos acabam sendo muito similares na questão de autogestão e experimentações. Descobri frequências graves fascinantes em uma parte do leito do rio Ribeirão – Santana, que cruzava o local onde estávamos. O estalar dos bambuzais amplificado com microfonação de contato. Lindos registros de um passeio na serra da Bocaina até a Cachoeira São Isidro que me proporcionou eventos sonoros subaquáticos de uma beleza única. Por fim pude realizar uma intervenção sonora na paisagem acústica local com a composição de uma peça feita por sintetizador, efeitos e reproduzida através de nove estruturas formadas por autofalantes fixados na parte superior de bambus com diferentes tamanhos. Pensava que isso seria um contraponto, mas na verdade o que ocorreu foi um diálogo muito interessante entre sons, paisagem e animais que por ali circulavam.
Que tipo de equipamento tem usado, e por que a escolha?
O equipamento que tenho usado para registro é um gravador digital TASCAM DR100-mkII, geralmente tenho utilizado os microfones do próprio gravador, mas também utilizo shotguns para captações com opções unidirecional e omnidirecional para registros mais específicos ou ampliados. Além desse, também tenho utilizados microfones de contato para registros sônicos de eventos projetados por vibração sejam eles em objetos ou em meios aquáticos. Já nas composições eletroacústicas utilizo um sintetizador microKORG conectado a pedais de efeito e um sampler.
Precisas de assistência na hora da gravação?
Não solicito assistência durante esses processos. Bem, na verdade prefiro fazê-lo sozinho, pois dessa maneira me sinto mais livre para mergulhar no ambiente.
Foto de abertura: Mário Macilau